A importância dos rituais na prática médica.
Atos de gratuidade e simbólicos são alicerces de uma medicina humanística.
A medicina contemporânea está sendo transformada pela lógica da eficiência e da produtividade. Essa transformação é mais pronunciada nos grandes centros, onde a tensão da interface entre os princípios da engenharia de produção e a arte médica acontece primeiro.
Os princípios administrativos em voga, como o lean healthcare e o time-driven activity based healthcare, focam muito (e precisam) nos dados administrativos e de gestão, na redução do desperdício de tempo ao longo do cuidado, por meio da pressão por resultados mensuráveis e indicadores de desempenho.
Consultas rápidas e protocolos padronizados reduzem o espaço para as interações humanas significativas. A instrumentalização do tempo pelo atual “espírito” administrativo, substitui a consulta médica - a prática simbólica do ato de ouvir o paciente – por um rito desvinculado da alteridade e do cuidado autêntico. A pressão pela otimização do desempenho resulta na superficialização, no apressamento ou no simples desaparecimento dos rounds clínicos, espaço simbólico de aprendizado coletivo e reflexão entre médicos e demais profissionais de saúde.
Utilizei propositadamente a palavra “simbólico” ao relatar a relação médico-paciente e os rounds clínicos. Seria errôneo relacionar o simbólico, nesse contexto, a algo superficial, meramente representativo ou secundário. O simbolismo aqui representa algo que envolve profundidade, transcendência, gratuidade e, principalmente, uma estruturação de tempo e espaço.
Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano radicado na Alemanha, possui uma ampla produção filosófica baseada na análise da contemporaneidade. Em sua obra publicada em 2019, O Desaparecimento dos Rituais (Die Entschwinden der Rituale, no original alemão), ele descreve o valor do simbólico:
“O símbolo (em grego, symbolon) significa originalmente o sinal de reconhecimento entre amizades hóspedes (tessera hospitalis).....
A percepção simbólica, na condição de reconhecimento, percebe o permanente. O mundo é, desse modo, liberado de sua contingência e ganha algo permanente. O mundo hoje está muito desprovido de simbólico. Dados e informações não possuem força simbólica. Assim, não admite reconhecimento. No vazio simbólico, todas as imagens e metáforas que provocam sentido e comunidade e que estabilizam a vida têm se perdido.”
Percebam que o “simbólico” está, aqui, intrinsicamente ligado aos rituais, definidos como práticas que estruturam o tempo, criam comunidade, conferem significado. Vou procurar discutir a consulta médica e os rounds clínicos como rituais em ameaça de desaparecimento.
Como um ritual, a relação médico-paciente, o ouvir com atenção plena, cria um tempo sagrado porque vai além de coletar dados clínicos: gera empatia e validação. O estabelecimento da conexão humana valida a dignidade do paciente. Um médico que cria esse tempo sagrado para ouvir as angústias de um paciente ou familiar, mesmo que isso não altere o tratamento já delineado, realiza um gesto gratuito. Esse é um ato simbólico.
Os rounds clínicos são reuniões em que as equipes médicas visitam pacientes, discutem casos, compartilham conhecimentos e sabedoria. Observa-se a existência de uma estruturação de tempo-espaço, um caráter comunitário, uma dimensão simbólica e de gratuidade nesse ritual. Eles criam uma pausa reflexiva, um tempo “sagrado”, raro no contexto da lógica de urgência do ambiente hospitalar. Reforçam o senso de comunidade, de pertencimento e de colaboração entre os profissionais de saúde. São carregados de simbolismo pois têm um caráter pedagógico, ético, de transmissão de valores da profissão médica. Apesar de terem objetivos práticos – definição de tratamento – também são momentos de reflexão, de troca de experiências, e, dessa forma, transcendem a funcionalidade e reforçam a gratuidade.
Notem que tanto a relação médico-paciente quanto os rounds envolvem o conceito de gratuidade, algo que é oferecido sem a expectativa de recompensa, retorno financeiro ou utilidade imediata, e isso contraria a lógica acelerada da sociedade de desempenho, pois não “produz” algo tangível. A mercantilização das relações, aí incluído o conceito de saúde como um produto, é incompatível com esses conceitos de rituais da relação médico-paciente e dos rounds, pois esses são vistos como ferramentas para atingir as metas institucionais (como reduzir internações ou cumprir indicadores), eliminando o espaço para a gratuidade. Dessa forma, a relação médico-paciente e os rounds como rituais deixam de ser valorizados e são induzidos ao desaparecimento.
Seguindo Byung na mesma obra:
“Rituais são ações simbólicas. Transmitem e representam todos os valores e ordenamentos que portam uma comunidade. Geram uma comunidade sem comunicação, enquanto hoje predomina uma comunicação sem comunidade.”
Infelizmente a perda desses rituais traz consequências para os médicos, para os pacientes e para a formação médica. Resulta no esgotamento e desumanização da prática médica, o que alimenta a epidemia de burnout, pois há ausência de pausas para o simbólico. Os pacientes se tornam “casos ou números” em vez de pessoas. A formação médica se torna incapaz de formar médicos reflexivos e empáticos. Sem os ritos, tudo se torna um looping, levando à exaustão.
Esse ensaio não tem a intenção de enaltecer um romantismo negacionista ou um saudosismo sem propósito, pois a realidade está aí e devemos aprender a lidar com ela, inclusive com a reflexão de possíveis caminhos para mitigar essas consequências. A medicina é um laboratório de ensaio perfeito para as hipóteses levantadas na obra O Desaparecimento dos Rituais. O autor ainda aprofunda, em outros livros, a discussão da obsessão atual pelos dados e de como entregamos nossa soberania a eles, alimentando nosso cansaço como sociedade. Essa impressão só reforça a importância da obra de Byung-Chul Han para a análise da sociedade atual.