A Linha Tênue entre Decisão e Desastre.
“Tudo o que vivemos, vivemo-lo por meio de impressões que os sentidos nos dão. Ora os sentidos enganam.” — Fernando Pessoa, em “Livro do Desassossego”
No monitor militar, subitamente surge uma imagem. Na sequência , mais quatro imagens idênticas fazem soar imediatamente o alarme: a União Soviética estava sob ataque de cinco mísseis nucleares americanos. O recente Sistema de Detecção Precoce de mísseis estava provando seu valor, e agora restava a decisão de retaliação. Poucos minutos restavam para o impacto e a consequente onda de destruição. O ano era 1983, quando o mundo esteve à beira de um conflito nuclear global, mas, felizmente, a ação, ou melhor, a decisão de um único homem evitou o fim da civilização como a conhecemos. Stanislav Petrov, um oficial do exército soviético, se viu diante de um cenário de extremo risco: um sistema de alerta disparou, indicando que mísseis americanos estavam em rota para a União Soviética. Era um cenário apocalíptico, com a guerra mundial nuclear prestes a começar. Seu treinamento militar determinava que a próxima ação seria acionar imediatamente seus superiores e comunicar o ataque para retaliar.
No entanto, Petrov, usando sua experiência, intuição, coragem e racionalidade, ignorou o alarme e as ordens, acreditando que o sistema havia falhado. Tomou a decisão de aguardar os possíveis impactos; se ele estivesse errado, milhões de vidas soviéticas evaporariam. Se estivesse certo, evitaria o apocalipse nuclear. Poucos tensos segundos se passaram…
…e nada ocorreu. Ele estava certo. Havia sido um falso alarme. O sistema estava errado, e o mundo foi salvo de uma catástrofe por uma decisão de um único homem.
Este evento nos força a refletir sobre como decisões podem ser tomadas diante de dados incertos e sistemas falíveis, tal qual a natureza humana, sempre incompleta. Petrov não confiou cegamente no sistema, mas agiu com base em uma análise e julgamento críticos e em sua experiência; ele havia observado que os radares em terra não confirmaram as imagens do sistema de detecção de mísseis, e julgou a improbabilidade de os americanos atacarem com um número reduzido de mísseis.
Esse raciocínio nos leva a um campo igualmente crucial: a medicina, onde a confiança excessiva nos dados e a dependência cega de tecnologia também podem ser muito perigosas. Isto se torna extremamente relevante em um cenário em que pacientes e médicos são continuamente expostos a uma infinidade de informações fornecidas pelos mais variados exames, supostamente embasados por uma miríade de estudos científicos. Como não se afogar em um oceano de informações? Como o médico tomará a decisão correta nesse emaranhado de dados?
A medicina utiliza o conhecimento científico, obtido através da aplicação adequada do método científico. Para decidirmos se alguma evidência é verdadeira (ou corresponde e se aproxima da realidade dos fatos) ou não, utilizamos duas habilidades: as observações e as inferências lógicas, que são distintas e complementares. Aquela, obtemos através de nossos sentidos e realizamos experimentações na realidade. Esta, utiliza-se das habilidades cognitivas do raciocínio e julgamento, aplicando-as às observações. Logo se vê que ambas são fundamentais. Se Petrov não tivesse sucesso em seu julgamento e raciocínio ao analisar as observações (imagens dos supostos mísseis) provavelmente o mundo não seria tal qual o vivenciamos hoje.
Utilizamos a inferência dedutiva para predizer qual deveria ser o resultado das observações particulares a partir da hipótese ou teoria geral construída previamente. No entanto, fazer predições sobre pacientes individuais a partir de estudos clínicos acrescenta uma camada extra de incerteza, e precisamos estimar a probabilidade para um indivíduo sempre extrapolando dados de um grupo de pacientes com características similares (estudos clínicos). Quanto melhor o estudo, ou artigo científico, menor será seu viés (tendência a erro sistemático) e mais próximo será o resultado da realidade, mas…
…Observem que as palavras utilizadas são probabilidade, estimativa e inferência. Não certeza e exatidão. Estes são luxos fictícios na prática médica, justamente porque a realidade daquele indivíduo que está sob cuidado médico nunca corresponderá exatamente à realidade da população estudada em qualquer artigo científico, por melhor que ele seja; o “paciente-médio” dos artigos é uma abstração teórica. Estudamos grupos e populações inteiras de indivíduos porque é uma condição matemática necessária para se obter previsões probabilísticas com o menor erro possível.
A Medicina Baseada em Evidências (MBE) é um princípio fundamental atual, uma maneira de filtrar o que realmente importa. Trata-se de usar os melhores dados disponíveis, provenientes de estudos e pesquisas científicas, para guiar decisões clínicas. Porém, tal como no caso de Petrov, a confiança excessiva nos sistemas e dados pode ser prejudicial. A MBE, embora extremamente poderosa, não é infalível. Abordaremos esta questão em um segundo artigo.
Trazendo para a prática clínica, o médico raciocina com a chamada probabilidade pré-teste (a chance inicial de um paciente ter uma doença, com base em fatores como sintomas, sinais e histórico), que, muitas vezes, precisa ser ajustada após a realização de um exame ou de acordo com a evolução clínica e o surgimento de novas informações. A probabilidade pós-teste, por outro lado, é a chance de um paciente específico realmente ter a doença após o exame, levando em consideração a precisão do teste.
Porém é aqui que entra a incrível complexidade das decisões médicas. Quando qualquer exame é realizado, não importa quão “avançado” ou moderno seja, não oferece uma resposta definitiva. Um aforismo clássico, repetido como um mantra nos rounds clínicos em tempos de residência médica, é que “A clínica é soberana”. Significa que o composto majoritário de julgamento crítico e raciocínio clínico são cruciais e preponderantes, embasados nas informações observadas pelo médico - sinais, sintomas, histórico médico e exames complementares. Sim, apenas complementares, e não basilares ou indispensáveis. O exame apenas ajusta a probabilidade determinada anteriormente pelo raciocínio clínico, o qual determina a conduta médica. É o médico que leva em consideração a possibilidade, por exemplo, de resultados falsos-positivos (como no caso das imagens da tela de Petrov), e também falsos-negativos, quando existe a doença mas o exame não a detecta.
A tecnologia deve então ser aplicada como um auxílio ou complemento ao raciocínio clínico, nunca como seu substituto. Podemos imaginar os exames como uma espécie de “lente” que aumenta e potencializa, ampliando os sentidos do médico para realizar, captar ou analisar as observações para corroborar ou refutar elementos do seu raciocínio; tal qual uma vela acesa em um grande quarto escuro, auxiliando o detetive a investigar, com suas limitações de alcance e intensidade de luz e áreas de sombra. Porém, caso ele não saiba o que está procurando, continuará perdido e dificilmente valorizará algum achado importante ou decisivo para solucionar o caso. Note que, mesmo na total escuridão sem o auxílio da tênue luminosidade, desde que soubesse qual pista ou informação encontrar, fazê-lo-ia, embora com maior dificuldade ou em maior tempo.
Um exemplo clássico das limitações da tecnologia é o caso de exames preventivos. Se a prevalência de uma doença é baixa, um resultado positivo pode ser enganoso. Embora o exame tenha alta sensibilidade (capacidade de identificar quem realmente tem a doença), ele pode resultar em falsos positivos devido à baixa prevalência da doença. E isto não quer dizer que o exame apresenta algum defeito oculto ou mesmo erro de execução; as características de desempenho de todo e qualquer exame diagnóstico (ou seja, uma observação aproximada da realidade factível) serão sempre variáveis e nunca perfeitas.
Esse cenário traz à tona a fragilidade do uso indiscriminado e não reflexivo de exames complementares. Parece-me que parcela significativa de profissionais e pacientes valorizam em demasia a quantidade de exames empregados, como se representassem um sinal da competência do médico. Crasso engano! Muitas vezes a dependência dessas ferramentas pode levar a diagnósticos errôneos. O uso cego, por formação acadêmica deficitária ou desvio de conduta, de exames para decidir o diagnóstico não é diferente de confiar cegamente em um sistema de alerta de mísseis. Por mais Petrovs na medicina!
Ecos da realidade: A dramática história real de Stanislav Petrov é contada no documentário The Man Who Saved the World (2014), que o apresenta como aquilo que verdadeiramente era — um homem comum com um senso extraordinário de responsabilidade.
The Man Who Saved The World Official Site.