A Melodia das Palavras - Ensaio sobre poesia e música
The essential thing in art is to express; what is expressed does not matter. Fernando Pessoa - Aforismos
Arrebata-me a distinção entre a música e a poesia; naquela o sentimento produz o sentido ou significado, enquanto nesta o sentido provoca o sentimento.
Não se trata de uma reflexão sobre a maneira com a qual essas formas de arte são geradas, mas fundamentalmente sobre o efeito, ou o fim, que ambas causam nos receptores (ouvintes ou leitores). Palavras e versos estão para o poema assim como notas musicais e melodias estão para a música. As duas expressões da arte apresentam uma interessante contraposição intuitiva, que pode ser melhor entendida com os conceitos gregos de arkhé (princípio) e télos (fim), explicados por M. Spinelli: “Na arkhé está o télos, ou seja, no ponto de partida do processo da geração está o objetivo…final daquilo que nasce, cresce e se realiza enquanto tal”. Como a pequena semente que contém a grandiosa árvore em potência. Sem sentimento não há efeito (sentido) para a música, enquanto sem sentido ou significado não há êxito (sentimento) para a poesia.
Palavras soltas, sem conexão de sentido fático ou emocional, mesmo que perfeitamente harmoniosas esteticamente, produzem um artefato vazio e nulo em seu efeito, pois falta-lhe a essência. É preciso, portanto, arrebatar - e porque não conquistar, a mente do leitor para então provocar-lhe o sentimento que o poeta deseja expressar, seja qual for, estranheza, regozijo, tristeza, medo, repulsa, excitação, ou mesmo uma epifania. Enfim, tudo o que nos torna humanos. Melodias que não evocam sentimentos não tocarão a consciência do ouvinte, e como consequência não conseguirão atingir a sensação de sentido, seja íntimo e introspectivo, seja evocativo de uma memória pessoal.
O símbolo ou diagrama Taijitu (tài jí tú) representa o conceito yin-yang de complementaridade entre duas forças ou entidades opostas, mas fundamentalmente não antagônicas, pois para a harmonia entre ambas deve haver o equilíbrio interdependente e dinâmico. Transportando para a relação dual ou polar entre significado (sentido) e sentimento (emoção), fica claro que um não pode existir sem o outro, cada um contendo o embrião do outro em sua essência em espelho, seja na música ou na poesia. Deve haver um equilíbrio na maneira que sentido e sentimento se inter-relacionam em cada uma das artes. A música e a poesia perfeitas, no conceito taoísta yin-yang, possuem a dualidade significado-emoção em equilíbrio perfeito, em uma arte total, taoísta, circular como o símbolo evocado. O sentido e o sentimento como forças complementares. Significado e emoção não são rivais, pertencem à mesma moeda estética.
Uma máquina ou robô jamais poderá ser impactada por um poema ou uma composição musical. Uma inteligência artificial pode ler poesia, até mesmo criar versos, mas não pode sentir poesia. É preciso possuir o arcabouço emocional e sentimental onde os versos e as melodias possam ecoar, repousar e florescer. No entanto, o efeito final gerado pela música é mais direto, pois a emoção é construída imediatamente pelas qualidades dos sons e suas composições, que prescindem da consciência racional no sentido literal; há uma ligação direta entre a música e os sentimentos. A música, em linguagem moderna, hackeia as funções cognitivas corticais cerebrais superiores e acessa in situ o sistema límbico arcaico, incluindo a amígdala (centro das emoções) e o hipocampo (formação de memórias), através do córtex auditivo no lobo temporal, produzindo autoconsciência e devaneio, promovendo a introspecção e ativando a imaginação, sobretudo pela Rede Neural de Modo Predeterminado. Cada indivíduo que sente a música traduz através de sua própria experiência o significado que lhe apraz, e pelo filtro de sua consciência e vivência cada experiência musical é, portanto, única em cada um.
Não há como negar a inter-relação e profunda conexão entre a música e a poesia. O poeta épico cego vagava pelos caminhos da Grécia antiga recitando de cor seus versos da maior obra literária de todos os tempos: Ilíada e Odisseia, no século VII a.C. Pode haver experiência mais musical do que o grande poeta cantando seus próprios versos? Os aedos, ou poetas-cantores, recitavam poemas memorizados de sua autoria, ao longo das gerações antes de serem registrados por escrito; já os os rapsodos recitavam poemas já existentes de outro autor. Ambos artistas itinerantes, essenciais para a transmissão e preservação da poesia épica. Homero, poeta que por alguns foi desumanizado, ou melhor, “ultra-humanizado”, ele mesmo tornando-se um símbolo, uma ideia de toda cultura da civilização grega arcaica, cuja obra permeia os séculos.
Curioso notar que chegou-se a teorizar sobre a incapacidade dos gregos antigos de perceber as cores e diferenciá-las tal qual o homem “moderno”. William Gladstone (1809-1898), primeiro-ministro inglês por quatro mandatos, chegou a especular que a civilização grega não tinha à época um sentido de cor desenvolvido. Isto porque Homero descreve em suas obras o mel como “verde”, a quase ausência da cor “azul”, o boi e o mar como cor de “vinho” (epíteto oínop-); aquém da tradição cultural dos gregos antigos e do simbolismo poético, que associava cores escuras à “maturidade” ou ao “vigor”.
Não é possível deixar de maravilhar-se com a absoluta genialidade do poeta criando imagens incrivelmente vívidas e intensas, apesar de sua cegueira, e lembrar-se de Ludwig van Beethoven compondo, milênios após, sua “Sinfonia n. 9 em Ré menor”, completamente surdo, impedindo-o de ouvir sequer uma única nota de sua obra-prima. Em ambos temos a expressão máxima da capacidade humana de criar algo universal, o pensamento que ultrapassa e, porque não, desafia o impedimento sensorial, de outra maneira fundamental e intransponível para indivíduos comuns, emergindo obras que os eternizaram. Homero, poeta cego monumental, Beethoven, compositor surdo imortal, os dois unidos no decorrer dos séculos por uma linha de transcendência sensorial, suas artes ultrapassando os limites do corpo, arkhé e télos maiores que os sentidos físicos. Parece-me que tampouco os gênios são poupados das tragédias do destino, e, quem sabe, eles catalisaram-na em benefício de sua arte, sendo tomados por uma urgência em viver antes de se apagar. Não há tempo para comodismo. “Haja ou não deuses, deles somos servos” escreveu Pessoa. É a prova cabal de que a genialidade e grandiosidade humanas são uma maldição divina, real ou ficcional, pois ao mesmo tempo que nos concede a mais ampla consciência, nos limita com ironia suprema. Como se com uma mão nos concedessem a centelha da eternidade, e com a outra nos cobram seu preço.
Muitos dos poemas gregos do período Arcaico ou Clássico são obras essencialmente musicais, muito embora as suas melodias não tenham nos alcançado intactas. O poeta, além de escrever seu poema, compunha a música para lira e flauta. Cantavam-se os versos e, por vezes, dançavam-nos. Apenas podemos imaginar como em um sonho distante a força poética de seus versos cantados, com seu ritmo e reverberação de cor e intensidade harmônicas; não há rima nos poemas épicos, e devemos imaginá-los como ouvintes, não leitores. A oralidade helênica há muito permitia, ou mesmo exigia, a relação íntima e rica entre poesia e música. Estamos nos referindo aqui a obras grandiosas com 24 cantos cada, que poderiam ser entoadas durante dias e noites a fio. O verso épico grego (hexâmetro dactílico) é tradicionalíssimo em suas medidas, os aedos utilizavam e exploravam a sonoridade das palavras assim como seu significado. Aedos modernos, se existissem, devolveriam à poesia sua oralidade ancestral.
Na música, o sentimento gera o sentido. Na poesia, o sentido gera o sentimento. A música invade pelos poros da emoção, como quem atinge o coração antes da palavra. A poesia, ao contrário, exige que a mente abra a porta, clamando pela consciência e pedindo para entrar com suas chaves de simbolismos e metáforas, para que a emoção se instale. Ambas contém arkhé e télos, entrelaçadas, o princípio de uma é o fim de outra. Cada arte, uma versão espelhada da outra, não antagônicas, mas harmônicas.
E entre os espelhos em dualidade, um defronte ao outro, surge a imagem de um ser humano pleno e virtuoso multiplicado ao infinito em seu potencial.
O ser humano virtuoso não é perfeito, mas é inteiro, íntegro, amigo de si mesmo, reconciliado com o ideal de homem possível, vivido e concreto, não abstrato, que esculpe a própria essência (“ousia”) humana com liberdade, realizando-se nela. Sim, o poeta Fernando Pessoa estava certo em afirmar que “o essencial da arte é exprimir; aquilo que se exprime não interessa.” O belo tem valor em si mesmo, porque expressa a unidade interna e a harmonia do ser humano excelente. Beleza não somente estética, mas uma forma de realizar plenamente a própria humanidade, de forma equilibrada e bela.
Permito-me sonhar com a geração mítica onde a fronteira entre poesia e música fazia-se indistinta, um tempo em que ambas eram uma só, um passado adornado com cores mais belas, quando deuses intercediam, inspirando os feitos heróicos dos homens e mulheres de um povo entoados e eternizados em versos e melodias épicas.