Entre Siracusa e o Prontuário
Arquimedes, o palimpsesto e a arte médica de escrever para pensar.
A criação do sistema alfabético prático dos fenícios (c. 1200a.C.) teve um impacto duradouro e estrutural na comunicação. Seu sistema, fácil de aprender e replicar, serviu de base para o alfabeto grego, influenciou o latim e permitiu a transição do conhecimento oral para o escrito. A técnica mudou a história. O ato da escrita permite novas descobertas, revela novas ideias e, principalmente, organiza nossos pensamentos. Essa capacidade de organização por meio da escrita nos permite refletir, nos libertar do pensamento caótico cerebral, nos engajar em pensamento criativo e, por conseguinte, evoluir. Nossa evolução científica é uma história bem contada e é resultado do poder da palavra escrita.
O médico deve ser um amigo da palavra escrita, pois tem, na companhia do prontuário médico, seu confessionário da prática clínica, onde deve descrever os pontos-chave da terapêutica, o raciocínio lógico instituído, inclusive com as nuances das dificuldades e particularidades do caso clínico. Deve procurar desenvolver a habilidade de organizar ideias, conectar dados clínicos e justificar decisões — de maneira breve e precisa. O prontuário médico é parte essencial do cuidado, não uma tarefa burocrática.
Escrever, como prática manual, ativa conexões neurais mais amplas do que a digitação mecânica, promovendo atenção ativa, retenção de informação e elaboração cognitiva. Isso permite transformar a escrita em algo mais grandioso que um registro: articular, organizar, selecionar e decidir. A escrita médica tem passado por uma mudança de paradigma com a informatização dos prontuários eletrônicos. Na época dos prontuários manuais, os médicos eram impelidos, até por questões de economia de tempo, desenvolver a técnica da escrita clara e precisa nos registros médicos —não entrando no mérito da caligrafia (!). Atualmente há um fenômeno disseminado de perda da qualidade dos registros, em virtude do recurso do copiar e colar, que parece estar induzindo à perda da arte de pensar com as mãos.
A repetição sem reelaboração leva à redução da capacidade de síntese, com a perpetuação de informações irrelevantes ou desatualizadas – quando não erradas –, resultando na estagnação do raciocínio clínico. Longe de uma defesa sem propósito dos prontuários manuais — pois os eletrônicos exibem inúmeras vantagens, como legibilidade, acesso remoto e rastreabilidade—, o foco é que a disseminação da replicação mecanizada de conteúdo está gerando prontuários inchados, com redundância narrativa e sem foco clínico. Há clara confusão entre quantidade e qualidade das informações.
Esse fenômeno diminui o esforço mental, limita a criatividade e a flexibilidade do pensamento clínico. A escrita deixa de ser o “reflexo de uma lógica impiedosa e da prudência consumada — características fundamentais de um prontuário conciso e com siso”, conforme João Manuel Cardoso Martins. Na prática contemporânea, os prontuários eletrônicos, nos quais se copia a evolução anterior e se acrescenta um dado novo — raramente se apaga ou reelabora o antigo —, resultando em um texto multiestratificado, confuso, redundante, em que o raciocínio clínico não avança, apenas se acumula. Não estamos criando prontuários eletrônicos, e sim palimpsestos digitais.
O termo palimpsesto vem do grego e significa “raspado novamente” (palin = de novo; psēstos = raspado). Na Antiguidade e na Idade Média, o pergaminho era um bem escasso e caro, feito por meio de um complexo processo artesanal, a partir de pele de animais, como ovelhas e cabras. Havia manuscritos em que um texto original era parcialmente removido por raspagem ou lavagem, para serem reutilizados com nova escrita.
Um dos mais notáveis palimpsestos da história é o de Arquimedes, matemático grego nascido em 287 a.C., na cidade de Siracusa, localizada na Sicília, atual Itália. A maior parte de sua vida é cercada de obscuridade. Uma das passagens marcantes é sua excitação com uma descoberta durante um banho de banheira, quando saiu correndo nu pelas ruas da cidade gritando a palavra grega: “Eureka! Eureka!” Ele foi além dos gregos, que apenas listavam suas descobertas matemáticas: deixou escritos explicando como chegou a elas. Sua genialidade chamou a atenção dos romanos e acabou morto por um soldado — aparentemente de maneira não intencional — durante a tomada de Siracusa em 212 a.C. É um dos vários exemplos históricos de como a ignorância pode destruir a genialidade.

Acredita-se que sua obra tenha sido compilada por volta de 530 d.C., em Constantinopla. Por volta do século X (cerca do ano 950), um escriba grego, também em Constantinopla, copiou à mão sete tratados do matemático, incluindo dois que não existem em nenhuma outra versão conhecida. No século XII, o pergaminho que continha esses textos foi raspado e reutilizado por um monge, que escreveu orações cristãs sobre ele, criando o palimpsesto. O manuscrito foi então encadernado como um livro de orações e armazenado por séculos.
Em 1906, o estudioso Johan Ludvig Heiberg encontrou o palimpsesto em Constantinopla (hoje Istambul), fotografou-o em partes e reconheceu fragmentos de textos perdidos de Arquimedes. Esse livro desapareceu logo depois, entrando no mercado negro da arte. Somente em 1998 ele reapareceu e foi comprado, em um leilão, por dois milhões de dólares. O comprador o entregou para restauração e estudo no Walters Art Museum, em Baltimore, Maryland, Estados Unidos. O Dr William Noel, nascido no Reino Unido e PhD em Estudos Medievais pela Universidade de Cambridge, descreve que, quando recebeu o manuscrito, um arrepio percorreu sua espinha dorsal, pois nunca havia imaginado que um material que vivenciou a mente de um gênio, morto há mais de 2200 anos, poderia um dia ser manipulado por ele.
Entre 1999 e 2008, o Dr. Noel foi o coordenador do projeto de resgate do palimpsesto de Arquimedes, utilizando tecnologia de imagem multiespectral, luz ultravioleta e processamento digital para recuperar a única cópia conhecida de obras fundamentais do matemático. Nelas, foram encontrados raciocínios do gênio relacionados ao equilíbrio de forças e centro de massa, combinações geométricas, o valor de Pi e o cálculo infinitesimal. Esses achados comprovaram que Arquimedes tinha um raciocínio analítico compatível com o de matemáticos e físicos modernos.
Percebam que o palimpsesto de Arquimedes representa um símbolo de memórias, vestígios do passado. No contexto clínico hodierno, onde buscamos a clareza e a atualidade das informações, o palimpsesto digital passa a guardar múltiplas camadas sem sentido — apenas resíduos de frases não pensadas. O “copiar e colar” não é apenas um problema técnico, mas ético e cognitivo. A escrita deixa de servir ao raciocínio e passa a encobri-lo, resultando em perda de credibilidade profissional e no enfraquecimento do papel do médico como comunicador e profissional reflexivo.
Na medicina, escrever é pensar, decidir e responsabilizar-se. O que se apaga quando a escrita vira função mecânica — um castigo de Sísifo — e não mais extensão do juízo clínico? O prontuário eletrônico tornou-se um palimpsesto contemporâneo: reaproveita o texto, mas apaga o pensamento.

Para seguir a incrível história do desvelamento dos pensamentos perdidos de um gênio.
O Palimpsesto de Arquimedes, apagado por monges no século XII, ressurgiu séculos depois como um tesouro científico. Através de tecnologia de ponta, descobriu-se que Arquimedes já intuía conceitos de cálculo, geometria e física muito antes de seu tempo. Assista ao documentário e acompanhe o fascinante resgate dessa obra no Walters Art Museum: