Faustão, saúde e a fila que é igual para todos
O tratamento pode variar, mas as regras de prioridade não mudam.
A notícia do transplante de fígado e retransplante de rim de Fausto Silva, após um transplante cardíaco prévio, reacendeu a polêmica sobre transparência e justiça no acesso a órgãos para transplante no Brasil. As reações do público revelam uma mistura de sentimentos: ceticismo, relatos pessoais de sucesso e contrariedade com o sistema, pedidos de responsabilização e investigação, descrença e sarcasmo. O tom crítico predominou sobre as manifestações favoráveis.
A fama nacional e riqueza do Faustão amplificam naturalmente o escrutínio. Em um país de desigualdades socioeconômicas marcantes, onde o Sistema Único de Saúde (SUS) atende milhões com recursos limitados, a suspeita de privilégios na alocação de órgãos torna-se quase inevitável. O Sistema Nacional de Transplantes segue legislação e regulação nacionais, mas é regionalizado conforme a hierarquização do SUS, o que gera variações estruturais e diferentes percepções na opinião pública leiga.
Num país desigual como o Brasil, é natural que um transplante para alguém rico e famoso desperte desconfiança, mesmo que a fila siga regras técnicas.
A percepção pública de injustiça nasce, em parte, da falta de compreensão sobre nuances do tratamento, mas encontra respaldo em uma inequidade de fato — inequidade esta relacionada ao acesso desigual a cuidados e recursos de saúde, e não a qualquer alteração nas regras de distribuição de órgãos, que permanecem técnicas e legais.
A principal força motriz das suspeitas é a crença em favorecimento na lista de espera, algo que, no processo de alocação, não ocorre.
Não obstante, sua condição financeira e visibilidade garantem acesso aos melhores especialistas, ao diagnóstico avançado e aos tratamentos de manutenção mais eficazes, o que influencia o preparo clínico, mas não altera a posição nem concede prioridade na fila de transplantes.
Isso contrasta com a realidade do SUS, onde atrasos no diagnóstico e cuidados limitados são comuns devido a restrições orçamentárias e organizacionais.
Um cuidado pré-transplante de excelência – nutrição otimizada, diálise, fisioterapia, utilização e adesão aos melhores medicamentos – pode melhorar ou otimizar o estado clínico do paciente, aumentando a elegibilidade para a lista de espera para o transplante. Em suma, a condição socioeconômica influencia o acesso à lista, mas, uma vez incluído, a distribuição dos órgãos independe desse fator. No sistema de transplantes, todos na lista seguem as mesmas regras de prioridade. Mas, assim como em uma corrida, alguns chegam à linha de largada em melhor forma física — graças a cuidados médicos mais completos. Isso não muda a ordem de chegada, mas influencia quem consegue completar a prova.
No transplante, a fila é a mesma para todos, mas quem tem acesso a melhor tratamento chega em melhores condições para esperar — uma diferença que está ligada à capacidade de manter a saúde até o procedimento e não a interferências na escolha de quem vai receber o órgão.
Transplantes múltiplos são raros porque exigem equipes muito especializadas e infraestrutura de saúde que não existe em todos os lugares. No caso do Faustão, o acesso a esse tipo de tratamento também está ligado aos recursos que sua condição financeira permite, o que reflete desigualdades estruturais do sistema de saúde brasileiro, e não qualquer manipulação da lista de espera.
A questão é que, embora ele receba cuidados de saúde melhores, isso ocorre dentro da legalidade e não muda a ordem de distribuição dos órgãos. Para quem não conhece o sistema, a diferença entre decidir quem recebe o órgão — ou seja, a lista de espera e a distribuição — e preparar o paciente para o transplante é confusa e gera dúvidas.
A ordem de quem recebe um órgão é definida por critérios médicos na lista de espera. Recursos extras influenciam a preparação, não a prioridade.
Assim, a percepção pública ecoa uma inequidade real — a população sabe que alguém rico e famoso pode receber um cuidado de saúde melhor, mas esse cuidado extra não altera as regras nem a ordem de distribuição.
Quando essa nuance não é compreendida, especialmente em casos de grande repercussão, o efeito é corrosivo para a base altruística da doação de órgãos. A desconfiança pode levar à recusa em doar. No Brasil, esse fenômeno é conhecido: os estados com maior recusa à doação coincidem com os que têm menor confiança na eficácia do sistema de saúde.
Diferenças de preparo não significam prioridade na fila, mas quando isso não é entendido, a confiança no sistema cai e as doações diminuem.
A repercussão negativa dos transplantes do Faustão, alimentada pela percepção de que o sistema é tendencioso, convida à reflexão sobre como a comunicação poderia ter sido melhor conduzida. A legislação é clara, o sistema é consolidado e a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO) divulga relatórios trimestrais com dados de doações, listas de espera e transplantes. Ainda assim, a reação da opinião pública demonstra espaço para melhorias na comunicação.
Uma reflexão seria, em casos de grande exposição midiática, criar um protocolo de comunicação pré-transplante, na qual a equipe médica explicasse, de forma genérica, as condições clínicas e critérios de prioridade. Dada a notoriedade do paciente, isso poderia atrair atenção e facilitar a compreensão do caso, reduzindo desconfianças. Evidentemente, essa prática envolve questões éticas e só pode ocorrer com autorização expressa do paciente e de sua família. A partir desse disclosure, ABTO ou SUS poderiam promover campanhas de esclarecimento sobre transplantes múltiplos e critérios de priorização. Tal abordagem poderia humanizar o processo e reduzir suspeitas, conciliando confidencialidade e interesse público.
A transparência, quando voluntária e planejada, pode evitar distorções e preservar a confiança da população no sistema de transplantes.
A narrativa do privilégio vem ofuscando a real necessidade médica de uma figura pública querida, que marcou as tardes de domingo de milhões de brasileiros. Essa percepção é compreensível diante das desigualdades sociais, mas não reflete o funcionamento técnico da distribuição de órgãos. Faustão enfrenta uma grave e rara combinação de doenças e merece compaixão e empatia. Uma abordagem multifacetada — com divulgação voluntária e previamente acordada em casos de grande repercussão — poderia aproximar a percepção popular da realidade médica. Afinal, a confiança pública não é um detalhe periférico: é um pilar essencial para a sustentabilidade do sistema de transplantes.