Florença é o berço do Renascimento e atrai milhões de turistas anualmente em razão de sua ímpar conjunção de história, arte, arquitetura e cultura. A revelação de sua beleza é uma indelével lembrança para quem já teve a oportunidade de conhecê-la e é sempre reavivada pela admiração de novos relatos daqueles que estão a explorá-la atualmente.
Sua riqueza cultural é infinita, pois há uma mistura de arquitetura com pinturas, esculturas e cores agregadas durante centenas de anos de um contínuo aprimoramento, de elevação de seu espírito de grandeza. Sejam as obras de arte arquitetônicas — Basílica de Santa Maria Novella, Batistério — ou os museus — como a Galeria Uffizi —, ou as esculturas — como o Davi de Michelangelo —, tudo compõe um cenário de esplêndida admiração e de aclamação do que realmente é o belo, essa forma superior do sensível.

Observamos na foto acima em primeiro plano o Batistério de San Giovanni (século XI-XIII), que em seu domo de 27,4m de diâmetro contém pinturas, afrescos e mosaicos que, segundo Judith Dupré, representam “coros de anjos, histórias do Gênesis, as vidas de José, Maria e Jesus, assim como a vida de São João, patrono da cidade”. O interior suntuoso da igreja é complementado de maneira única por suas portas entalhadas em bronze. A porta sul foi esculpida por Andrea Pisano (1330-36) e a porta norte (1402-24) e a leste (1425-52) por Lorenzo Ghiberti. Essas obras-de-arte da fundição de bronze representam diferentes cenas do Novo Testamento e, conforme relatado no livro ‘Churches’, de Judith Dupré, causaram a seguinte reação do gênio Michelângelo:
“Oh Divine Work! Oh door worthy of heaven!”
Em segundo plano temos a Santa Maria del Fiore, construída de 1296 a 1436 por vários arquitetos e resultado da ambição de gerações de florentinos em, ainda segundo Dupré, “criar a maior, mais maravilhosa catedral do mundo”, onde sua pedra fundamental foi alocada “numa ousada estrutura em que a beleza e o tamanho seriam não somente um hino a Deus, mas também à engenhosidade e discernimento dos florentinos”. Inspirada na forma do batistério vizinho, desenhou-se uma catedral cruciforme com cruzeiro octogonal, de onde se irradiavam três braços de igual comprimento. A primorosa torre do sino (Giotto di Bondone) tem um topo semelhante à torre do próximo Palazzo Vecchio, então sede do governo comunal de Florença, o que revela as conexões dos interesses cívicos e religiosos da cidade.
Mais ao fundo da foto observamos o domo de Filippo Brunelleschi, cuja solução construtiva o imortalizou. O domo, com seu ponto inicial a 54m de altura, com altura de 33m, foi motivo de desconfiança quanto à possibilidade de que se sustentasse, mesmo após o início da sua construção, obrigando o próprio Brunelleschi a chegar às vias de fato diversas vezes para assegurar sua execução. De maneira meticulosa, o artista controlou cada aspecto de sua construção, utilizando-se de técnicas inéditas e resultantes de seus estudos das abóbodas das mansões do Império Romano. O interior da catedral, pintado por Giorgio Vasari e completado por Federico Zuccari, complementa o tema do Batistério, ecoando o Último Julgamento, sendo o maior ciclo de afrescos cristãos já feito.
Nesses últimos parágrafos procurei descrever de maneira breve, flertando com a superficialidade, utilizando literatura especializada, como o livro Churches de Judith Dupré, para, primeiro, relembrar os que conhecem essas maravilhas, mas também tentar descrever para os que não conhecem o belo de uma pequena parte da cidade.
Meu intuito é demonstrar a grandiosidade — o que não é possível com tão poucas e débeis palavras — de obras de arte que foram construídas durante séculos, no curso de gerações que resultaram nessas criações eternas. O objetivo é chegar a um ponto de reflexão, por que já não criamos esse tipo de expressão do belo? Por que não mais se expressa o sublime com tamanha suntuosidade?
Minha primeira reflexão foi relacionar o esvanecimento do belo ao resultado do processo de secularização, pelo qual a influência da moral e a educação do indivíduo é desviada do eixo religioso para o eixo racional. Por conseguinte, o belo seria o resultado da forte influência religiosa do período, em detrimento da razão.
Como poderíamos imaginar, transpor nosso pensamento, a fim de achar a justificativa ou compreender o motivo pelo qual a população florentina foi capaz de literalmente financiar, estimular e construir a beleza durante tantos séculos? Como uma sociedade, à luz de muitos seculares atuais tida como retrógrada por ser religiosa, conseguiu nos presentear com tamanha beleza?
Na própria Florença acredito ter achado um ponto de reflexão, bebendo da fonte da sabedoria de um florentino nato, batizado no Batistério de San Giovanni, e autor da obra-prima da língua italiana e uma das grandes da literatura universal, A Divina Comédia de Dante Alighieri.
Ao longo de sua jornada Dante percorre o Inferno e Purgatório na companhia do poeta Virgílio, esse representando a razão humana, a filosofia clássica e a racionalidade. Alighieri demonstra seu incondicional amor à Florença, sua crítica explícita à corrupção, divisões políticas e a decadência moral de sua cidade natal – Dante fora exilado de Florença em 1302. Um importante ponto de inflexão ocorre ao chegar no Paraíso, ali Dante não pode mais ser acompanhado por Virgílio, somente por Beatriz, sua bela amada, representante da beleza divina. É ela que assume o papel de guia de Dante em direção ao Paraiso.
Durante os séculos do florescer de Florença, a cidade não foi conduzida por pessoas perfeitas. Seja nas divisões políticas da época de Dante entre os guelfos e guibelinos (final do século XIII e início do XIV), ou após a vida de Dante na ascensão dos Médicis (final do século XIV e início do XV), a beleza da cidade foi construída ao permeio de uma sociedade falha — Dante critica aqueles que acumulam riquezas por vaidade ou que corrompem a sociedade. Mas foi essa sociedade falha que financiou através da comuna de Florença, das guildas, das famílias ricas, com maior ou menor importância de acordo com os ciclos econômicos a construção para a eternidade do belo. Se foram construídas por uma mistura de devoção, ambição e busca de prestígio é pouco relevante, pois uma visão a mais longo prazo permitiu que se criasse uma obra de grandeza perene.
No atual processo de secularização, a ausência de uma narrativa de eternidade, combinada com o individualismo, foco no efêmero e na fragmentação cultural, redireciona a riqueza para outros fins, muitas vezes mais práticos, mas menos tangíveis ou esteticamente duradouros. Um flagrante contraste é que, mesmo a sociedade secularizada ainda busca o belo que transcende, haja vista os milhões de turistas que buscam a beleza de Florença anualmente. Esses seculares buscam a beleza em Florença, e inconscientemente a transcendência de Beatriz.
Essa constatação somente reforça a atemporalidade dos clássicos; eles não se limitam ao tempo em que foram escritos. A razão somente pode nos conduzir pelo inferno e pelo purgatório, como Virgílio guiou Dante — mas somente Beatriz — o belo pode nos conduzir à transcendência, à capacidade humana de transcender suas limitações. Sob o ponto de vista secular restrito, daqueles em que a razão se sobrepõe ao transcendente, Florença foi resultado de uma visão míope de uma sociedade profundamente religiosa, mas essa mesmas pessoas buscam em Florença a harmonia que desafia o tempo — a cidade que transcendeu sua época.
Os florentinos não eram míopes por serem religiosos — eram racionais — e por tal qualidade atravessaram o inferno e o purgatório de uma sociedade imperfeita, transcendendo a beleza eterna, feito tal que a sociedade atual não parece nem chegar perto. Será que ainda somos capazes de construir o que não visa apenas durar, mas transcender?