Mais informados, mas mais sábios?
Simplesmente olhar as estrelas é fácil, entender para onde apontam é outra coisa.
As relações humanas são carregadas de nuances. A médico-paciente, classicamente assimétrica por apresentar um detentor do conhecimento frente a alguém em sofrimento, tem na era digital nuances adicionais às quais o médico diligente deve estar atento.
O digital permite o acesso instantâneo a um oceano ou a uma galáxia de informações, muito aquém da nossa capacidade humana de absorvê-las. Essa realidade resulta em uma mudança no aspecto da autoridade médica, pois a posição prévia de detentor de conhecimento pode ser esvaziada. Ao ser confrontado com essa realidade, o médico deve estar preparado para lidar com essa perda parcial da autoridade tradicional e entender como acolher o conhecimento do paciente sem sentir sua competência questionada. Precisamos compreender como natural a busca do paciente por informações, seja ela resultante do medo ou do desejo de controle.
Oceano e galáxia, como figuras de linguagem, denotam a sensação de amplitude, que não tem fim. Essa sensação de infinitude remete a um clássico da literatura, que relata a luta de Santiago, um velho pescador, contra o mar e um enorme peixe. Horas e horas se passaram na batalha entre eles, quando vem o anoitecer:
It was dark now as it becomes dark quickly after the suns sets in September. He lay against the worn wood of the bow and rested all that he could. The first stars were out. He did not know the name of Rigel but he saw it and knew soon they would all be out and he would have all his distant friends....
O sábio tem suas mãos calejadas em câimbras, seus sentidos exasperando:
I´m clear enough in the head, he thought. Too clear. I am as clear as the stars that are my brothers. Still I must sleep. They sleep and the moon and the sun sleep and even the ocean sleep sometimes on certain days when there is no current and a flat calm...
Em “The Old Man and the Sea”, de Ernest Hemingway (1952), Santiago tem a sua disposição as informações, as constelações. As informações na era digital são como as estrelas brilhantes no céu, são visíveis, disponíveis, abundantes. No entanto, circulam sem hierarquia de estrutura; são efêmeras e fragmentadas, pois respeitam a cultura da transparência e do imediatismo.
Não é a abundância das informações, as estrelas, que confortam Santiago, pois ele não sabia o nome de Rigel — a Estrela supergigante azul da constelação de Órion — e sim o seu saber implícito. Ele simplesmente conhece as constelações e os padrões celestes das estações do ano. O saber tácito é mais valioso, organiza as informações explícitas, transmite conforto: “I am as clear as the stars that are my brothers.”
A quantidade de informações explícitas pode dificultar a formação do saber, pode transmitir a sensação de empoderamento, mas resultar em sobrecarga, confusão, ansiedade, desconfiança. O saber possui uma temporalidade longa, não efêmera. É construído ao longo de anos de formação e prática, envolvendo não apenas fatos, mas também experiência e julgamento. É profundo como o oceano e contemplativo como o céu estrelado. A experiência e o julgamento são os que propiciam a contextualização da informação, evitando a generalização; essa a maior inimiga de um tratamento focado no paciente.
Percebam que a transparência da miríade das informações pode, ao invés de revelar a verdade, obscurecê-la por meio de uma avalanche de fragmentos desconexos. A reflexão aqui é que a verdade não pode ser revelada de maneira instantânea, típica da velocidade do digital. Essa reflexão coaduna com o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), que sugere que “a verdade exige um processo de arrancamento do ocultamento, mediado por reflexão, experiência e relação”.
O essencial é compreender que a transparência do digital não necessariamente resulta em um desvelamento autêntico da verdade, os fragmentos da informação podem destruir as narrativas unificadoras, somente reveladas pela experiência e pelo julgamento. Não cabe aqui acusar Heidegger por uma defesa de manipulação ou censura das informações, mas reconhecer que o velamento é uma forma de respeito pela complexidade.
Como médicos, precisamos entender que nosso papel mais importante não é mais o de detentor de informações. O digital, a inteligência artificial, é mais capaz e eficiente. É através da sabedoria que podemos desvelar a verdade aos pacientes. É o oferecimento do saber implícito, não apenas técnico, mas relacional que é de maior valor. É se manter atualizado, alinhado aos preceitos da verdade científica, para não incorrer em risco de vieses, paternalismo ou resistência à inovação.
É entender que o empoderamento e o respeito da autonomia do paciente não se confronta com nosso papel, que o paciente com seu conhecimento caótico e superficial precisa de nossa ajuda, este é o mister de nossa missão hipocrática. É tentar através da relação médico-paciente — esta ainda importante — contextualizar os dados, efetivar uma ação terapêutica através da sabedoria, empatia e presença. Pois somente a sabedoria relacional ainda nos distingue da capacidade de processamento e cálculo frio das máquinas.
Para seguir sob as estrelas:
Convido à contemplação da delicada animação de O Velho e o Mar, dirigida por Aleksandr Petrov. Premiado com o Oscar de Melhor Curta de Animação em 2000, o filme foi inteiramente pintado a óleo sobre vidro, quadro a quadro, e revela — em imagens que se dissolvem como memória — a mesma sabedoria silenciosa e a mesma luta íntima entre homem, tempo e natureza que ressoam no texto de Hemingway. Uma narrativa visual onde as estrelas também falam.