O cirurgião tomista
A forja da decisão.
Pacientes expressam sua gratidão das mais diversas maneiras, por palavras, por gestos, por presentes. Quando se manifestam pela palavra escrita, suas palavras podem, de maneira não intencional, projetar no profissional homenageado um ideal que, não raro, não capta o indivíduo, mas um perfil moldado pela sua especialidade médica. É o martelar na bigorna que forja o ferro.
Como ilustração dessa interpretação, segue um excerto de uma carta de paciente, mostrando como esse perfil é percebido na clínica real:
“Em cada detalhe — no modo como explica, como observa, como decide — há um compromisso silencioso com a perfeição, uma fidelidade à ciência que se confunde com devoção... Trabalha com a serenidade de quem entende que curar não é um ato de poder, mas de entrega... A calma que o senhor transmite não vem da ausência de emoção, mas da sabedoria de quem carrega nos ombros a responsabilidade de devolver o que há mais de precioso: a vida. É essa entrega feita sem espetáculo, que faz de sua atuação algo tão grandioso.”
Esse trecho, a meu ver, é uma síntese da clínica cirúrgica sob a visão tomista: prudência e solidão.
O ‘prudente’ em cirurgia não segue a definição gramatical da palavra — cautela — e sim a virtude que governa o agir médico, sob a sua definição escolástica: reta razão no agir (recta ratio agibilium). Em Tomás de Aquino a prudência é arquitetônica, ordena as demais virtudes ao bem do ato. Segundo São Tomás de Aquino a prudência se constitui de 3 atos: Consilium (deliberar), Iudicium (julgar) e Imperium (mandar).
O consilium é o ato de investigar, consultar e de refletir as circunstâncias, meios e fins possíveis para uma ação. É aí que deliberamos sobre o que é bom fazer. No contexto clínico hodierno, esse é o espaço em que a multidisciplinariedade (enfermagem, nutrição, fisioterapia) é útil. Onde o espaço da equipe agrega opiniões a respeito do melhor conjunto de condutas para o paciente.
O iudicium é o juízo em si, o julgamento. É o ato de formar opinião ou decisão baseada na deliberação anterior. Aqui julgamos o que é melhor, utilizando a ponderação técnica e moral do médico, o que deve ser feito em conformidade com a reta razão. Esse é o espaço da arte médica, pois somente a técnica não resolve os problemas médicos — as evidências científicas de alta qualidade não são a maioria na medicina. Aqui a razão aplica o discernimento (experiência, cultura) para escolher o que é verdadeiramente bom e adequado. Nessa etapa a multidisciplinariedade passa a ser uma ilusão. Ela fornece, sim, um horizonte de racionalidade compartilhada, mas não é um mecanismo de partilha da responsabilidade.
O imperium é o ato final de aplicar a decisão tomada, é o ordenar e realizar a execução. Moralmente somente aquele que tem autoridade sobre o ato pode realizar o imperium, dessa maneira somente quem pratica a clínica cirúrgica pode decidir, não por hierarquia, mas por ordem moral natural — “actus non est perfectus nisi per imperium prudentiae”. É justamente daí que vem a solidão ontológica, não sentimental, do ato.
Ninguém pode decidir no lugar do outro, pois decidir é existir. Somente o indivíduo pode responder moralmente por um ato. Em Tomás a responsabilidade é indivisível. A solidão ontológica do cirurgião não é uma falha, é condição do agir ético autêntico. Entre o “nós decidimos” de um comitê e o “eu operei” há um abismo que nenhuma ata de reunião preenche.
Esses 3 atos definem o processo de deliberação e ação prudente. A prudência então é o juízo justo no tempo certo, e isso implica calma. Essa calma não é a indiferença, é o discernimento. A prolixidade racional é o oposto disso; a prudência é anti-retórica: governa o agir com poucas palavras. A verdade prática não se manifesta em discurso, mas em decisão justa.
As palavras da paciente, sem o saber, espelham o ideal tomista de consilium-iudicium-imperium. Não descrevem uma pessoa específica, mas um modo de conduta próprio da clínica cirúrgica: uma forja que modela quem a pratica de maneira reta.
Como Thomas E. Starzl – um dos luminares da medicina transplantadora — observou com sobriedade, a vida de clínicos, cirurgiões e pacientes foram forjadas por essa experiência: alguns se corroeram, outros se sublimaram, mas ninguém permaneceu o mesmo.





Excelente reflexão. A estrutura de Tomás de Aquino (Prudência: Consilium, Iudicium, Imperium) é uma ferramenta poderosa para entender a excelência na medicina, e seu paralelo com a cirurgia é claro. Na cardiologia clínica, essa mesma estrutura se aplica também de alguma forma.
O nosso processo decisório, especialmente diante das escolhas entre clínico, percutâneo e cirúrgico, expande enormemente o estágio do Consilium (Deliberar).
O Consilium e o Heart Team (clínico, hemodinamicista, cirurgião, especialistas em imagem): este é o momento em que o Heart Team atua plenamente. A deliberação envolve a integração de múltiplas variáveis objetivas (escores de risco, fragilidade, balanço trombose/sangramento, por menores das imagens) e a opinião do paciente. É uma fase rica em racionalidade compartilhada, que nos apresenta, muitas vezes, mais de uma opção válida.
O Iudicium Criterioso: Aqui reside o desafio central. O Iudicium (Julgar) exige que o médico, diante de todas as informações técnicas fornecidas (o Consilium), utilize a reta razão para definir o que é o melhor caminho para aquele indivíduo, e não apenas para a doença. A 'arte médica' se manifesta exatamente na incorporação das variáveis subjetivas e na experiência clínica para ponderar os riscos, definindo o juízo justo.
O Imperium e a Carga Moral: No fim, o Imperium (Comandar) é o ato de ordenar a execução do plano (seja ele a manutenção do tratamento clínico, o encaminhamento para a TAVI ou a indicação cirúrgica). Embora a execução técnica possa ser delegada (ao cirurgião, ao hemodinamicista), a Solidão Ontológica reside no médico que validou e ordenou aquela estratégia global de cuidado. A responsabilidade moral pela decisão final é indivisível.
A 'calma' que o paciente percebe é, portanto, a virtude da Prudência em ação: a capacidade de navegar essa imensa complexidade (Consilium e Iudicium) e chegar ao ato final (Imperium) com discernimento e convicção - independente de o desfecho final ter sido positivo ou negativo a decisão precisa ter sido bem fundamentada.
Grande Abraço
Leandro Vasconcelos