Is the spectator, and not life, the art really mirrors.
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All art is at once surface and symbol. Those who go beneath the surface do so at their peril. Those who read the symbol do so at their peril.
The Preface. The Picture of Dorian Gray. Oscar Wilde. 1891.
O escritor perfeito seria um indivíduo que transparece total e nitidamente a si mesmo e a sua essência em palavras, utilizando um instrumento imperfeito, a linguagem, para produzir perfeição da mensagem. A ambição máxima de todo escritor é produzir uma obra, um aforisma, uma ideia que seja axiomática e não possa ser alterada, pois encerra em si todo o significado, sem falta ou excesso, atemporal e universal.
O fetiche do escritor é não conseguir se enxergar, restando apenas um par de olhos transparentes desencarnando-se plenamente. Resta a palavra perfeita, e o autor se dissolve nela. O escritor perfeito, em verdade, é o matemático.
Pois a matemática é o deserto da exatidão absoluta da linguagem. Universal, atemporal. Mas então eis que surge o dilema. Quanto mais nos aproximamos da exatidão absoluta, matemática, em seu equivalente na linguagem, mais nos afastamos do significado flutuante ou da ambiguidade — rica e necessária — para a transmissão não da informação pura e simples, mas das sensações. Uma equação de soma nula. Segundo Fernando Pessoa: “Zero is the greatest metaphor. Infinity is the greatest simile. Existence the greatest symbol.”
Entre metáforas, analogias e símbolos, a escrita perfeita é a equação refinada e resolvida até a solução mais simplificada possível. A equação inicial e a solução final contêm as mesmas informações, conquanto com níveis diferentes de complexidade, do mais intrincado para o mais simples. No entanto, diferentemente da matemática, a escrita supérflua para exprimir o necessário não é complexa — é desastrosa. Nada tem a ver com a ambiguidade e a riqueza de palavras e conceitos ou versos. Na escrita, a complexidade verdadeira é exprimir claramente o pensamento. Na poesia, especialmente, a emoção justifica o balanço e o jogo das palavras para exprimir a multivalência dos sentimentos, inexatos por natureza. Os impasses na linguagem refletem a ambiguidade da subjetividade. Metáforas e analogias que nunca serão perfeitamente alcançadas em sua totalidade, símbolos que exprimem a existência do consciente oculto.
Tal qual uma esfera perfeita, refletiva e reflexiva, sem quaisquer deformidades, excessos ou faltas, que devolve a imagem de quem a observa, ou a lê — mas transformada pela sua superfície lisa e curva. É o mesmo observador, mas alterado pela superfície da esfera, ou pela palavras dos versos e prosa. Aqui ele pode se olhar ou imaginar de formas diversas do que pensa ser — e mais polida a esfera, quanto mais habilidoso o escritor.
Escritores medíocres produzem superfícies opacas.
Quero versos que sejam como joias que durem no porvir extenso, já diria Ricardo Reis. Esfera perfeita, linguagem lapidada e polida como diamante. E ao atingir o suprassumo em sua perfeição, além da linguagem que reflete o leitor possível, transmutado pela essência dos versos ou da prosa ideal e irreal, conseguir ir além e enxergar através da superfície reflexiva, deixando de existir o escritor, passando a surgir somente a sua essência transformada em sua obra. A comunhão perfeita entre escritor e leitor.
No entanto, a coincidência absoluta entre ambos — em realidade, entre quaisquer dois sujeitos, é miragem, pois não há comunicação total entre dois entes que jamais se revelam plenamente nem a si mesmos. O escritor habita uma fenda, um espaço entre o que deseja exprimir e a impossibilidade de dizer tudo. Mas, embora o faça com a certeza do resultado inalcançável, ele ainda escreve, e o fracasso predito e esperado é iluminado. Pois não há miragem sem luz, na escuridão.
Ele tenta, sabendo que ao chegar onde espera encontrará apenas dunas assépticas, a vastidão do deserto implacável do significado, matemático. O raro oásis do entendimento de um pelo outro, mesmo que terrível em seus segredos revelados — é literatura.
Esse fracasso é a literatura, nossa maneira única e elegante de enfrentar o dilema fundamental da linguagem, ser um ponto cego diante da experiência subjetiva.
Apenas orbitamos a plena compreensão, sem nunca aterrissar, atraídos eternamente pela necessidade de sermos reconhecidos pelo outro.
Queremos ser lidos, mas jamais poderemos ser nuclearmente compreendidos. A escrita sempre escapa do sujeito, mesmo que pareça capturá-lo, ou conquistá-lo.
O sistema falho da linguagem expõe o impossível da comunicação plena.
Mas a escrita resiste, ou melhor — deseja. Anseia perpetuar, transmitir a si mesmo através do tempo, conquistar a imortalidade. Porque nos falta algo, porque há um vazio, estamos sempre sedentos em meio ao deserto. Somos controlados simbolicamente por esta necessidade de preenchimento deste mesmo vazio, desta mesma falta.
Como no amor.
Constatação dolorosa, mas também é a força motriz da criação: a insaciedade. Todo escritor é um insaciável, com a diferença que ele se reconhece como tal e cada palavra é uma tentativa dolorosa de burlar a impermanência. Toda escrita, como o amor, é um ato falho. É a materialização do desejo disfarçado, social e moralmente aceitável.
Toda leitura é uma miragem.
Mas é tudo o que temos. E é somente o que podemos possuir. E ainda assim, e talvez por esse motivo, insistimos em escrever. Escrevo no espaço entre dois espelhos, um que reflete a lógica, outro que reflete o desejo. Filosoficamente busco a perfeição da linguagem, embora percebo a fratura insuperável entre o eu e o outro, porque o desejo do outro nunca é plenamente acessível. Esteticamente escolhemos a ambiguidade lírica como força de se chegar onde a razão não alcança.
Mas a escrita, mesmo a mais pura, é tradução.
Tradução de si mesmo.
Plágio de si mesmo. Pois toda tradução é traição, porque inalcançável. De um ser que tenta demolir, palavra por palavra, sua consciência para desvelar sua essência, na tentativa de se reconhecer humano pelo outro. É o sujeito exilado de si mesmo, apenas sentimos a superfície tênue do outro. Ele não pode ser totalmente conhecido. Apenas evocado.
A escrita é uma espécie oferenda trágica, algo que nunca será plenamente recebido.
O leitor ideal também é uma miragem; escrevemos para ninguém. Inventamos mundos para pessoas que não existem. Damos o que não temos a alguém que não é.
Projetamos uma fantasia sobre o que o outro sente ou entende, ou sobre o que se é para o outro — como no amor. Uma suposição de completude. Mas é tudo o que temos. E só o que podemos ter.