O Juramento e o Abismo
Eutanásia, doação de órgãos e o dever de preservar o princípio hipocrático
“... Aplicarei os regimes para o bem dos doentes segundo o meu poder e discernimento, e nunca para causar dano ou injustiça a quem quer que seja....
Não darei veneno a ninguém, ainda que me peça, nem sugerirei tal conselho; e, de modo semelhante, não darei a nenhuma mulher pessário abortivo. Guardarei pura e santa minha vida e minha arte.....”
Juramento de Hipócrates (V e IV a.C.)
Casos na Bélgica, Holanda e Canadá, onde a doação de órgãos após eutanásia é apresentada como um ato puro de altruísmo, expressão final de autonomia e compaixão, revelam o abismo moral de uma medicina que tenta conciliar o inconciliável: matar e curar.
Nesses locais, onde o procedimento é legal e praticado com protocolos definidos, a decisão é apresentada como o resultado de uma escolha autônoma, validada por múltiplos profissionais e capaz de ter um efeito terapêutico paradoxal: o desejo de doar como forma de alívio do sofrimento e de reforço da dignidade no fim da vida.
As diretrizes dessa prática defendem a separação estrita entre os processos de eutanásia e doação, em uma “engenharia ética processual” que valoriza o discurso da liberdade individual: “morrer ajudando os outros”. Assim, o altruísmo individual seria suficiente para neutralizar as tensões morais.
O raciocínio apresentado como justificativa para esses atos tem um viés marcadamente utilitarista e conciliador, mas não problematiza o potencial simbólico de normalizar a morte como meio terapêutico. Se a morte é pré-condição para o benefício de terceiros, o sistema corre o risco de instrumentalizar o paciente. Toda a engenharia ética processual é incapaz de enfrentar essa contradição estrutural.
Essa engenharia ética processual procura garantir que decisões “autônomas” sejam formalmente válidas; ela desloca o foco do conteúdo moral (matar, doar, sacrificar) para o processo de consentimento. O dilema moral passa a ser um problema de conformidade ética: desde que as etapas sejam cumpridas, o ato é legitimado.
O “potencial doador” não existe fora do sistema. É impossível que a decisão de morrer e a possibilidade de doar não se retroalimentem desde o início. O discurso da liberdade individual pode mascarar pressões sociais sutis: o doente sente-se útil ao morrer, numa sociedade que valoriza a produtividade e o altruísmo instrumentalizado. O princípio basilar da engenharia ética processual — a separação da eutanásia e a doação — é, portanto, eticamente insustentável.
O arcabouço ético — essa engenharia ética processual — que sustenta a prática é frágil, moralmente instável. Ele não consegue conciliar princípios inconciliáveis: preservar a autonomia individual; maximizar a utilidade social e manter a aparência de não violar o “do no harm”. A junção entre matar e curar, mesmo sob consentimento, viola o telos da medicina e o valor ontológico da vida humana. Esse arcabouço é a face da bioética contemporânea, que tenta se manter “neutra” e multicultural; no entanto, existem problemas que não pedem equilíbrio — pedem posição. A duplicidade eutanásia-doação é um deles, não é questão de gosto moral, é incompatível com a ideia de cuidado.
A moderna bioética transformou-se numa engenharia ética processual: o conteúdo moral é substituído pela conformidade procedimental. Desde que as etapas sejam cumpridas, o ato torna-se legítimo — mesmo que moralmente inadmissível.
Não podemos aceitar a ideia da eutanásia como meio de obter órgãos; é inaceitável a adoção de uma roupagem terapêutica para a instrumentalização de pessoas em nome de um bem coletivo — princípio que o Tribunal de Nuremberg condenou.
Mesmo que o resultado seja eficiente, racional, compassivo, sob o argumento de que “ninguém é obrigado” ou de que há “consentimento informado”, há inadmissibilidade moral, pois o sistema deixa de servir ao humano e passa a usá-lo como meio.
Usar o humano como meio é expressão do materialismo ético em essência e estrutura, pois a vida humana passa a ser avaliada segundo seu rendimento físico, biológico ou social. O corpo torna-se matéria útil, um instrumento a ser administrado racionalmente. Da eutanásia discutida para a obtenção de órgãos à eutanásia para a remoção de órgãos e à sua expansão para contextos não terminais, há apenas um salto semântico e bioético.
Toda a engenharia ética processual criada é incapaz de eliminar a cumplicidade profissional e a coerção simbólica de pacientes vulneráveis. É uma transgressão de identidade moral da prática médica, é o marco do declínio da civilização — o triunfo do relativismo moral. Essa combinação de eutanásia e transplante mina a base civilizatória da medicina: o respeito à dignidade intrínseca da vida humana.
Voltando ao Juramento de Hipócrates —
“Se eu cumprir este juramento com fidelidade, que me seja dado gozar felizmente da vida e da arte, honrado por todos os homens e em todos os tempos;
se dele me afastar e o violar, que o contrário me aconteça.”—
ele é mais do que uma relíquia: é o último ancoradouro moral diante do abismo do relativismo.
Nota do autor.
Esse texto não tem o intuito de buscar consenso, mas de afirmar clareza moral. Tenho a convicção de que existem limites que nenhuma lei, técnica ou protocolo podem ultrapassar sem desfigurar a medicina. Esses limites estão no Juramento de Hipócrates, que nos impõe não causar dano ou injustiça a quem quer que seja. Acredito que a discussão sobre doação de órgãos após a eutanásia não é questão de política pública, sanitária ou de liberdade individual; é um sinal do colapso ético de uma civilização. O propósito deste ensaio é tomar posição e tentar esclarecer, à luz de princípios filosóficos que não me pertencem — aqui representados por Hipócrates, Kant, Agostinho, Edmund Pellegrino, Nuremberg, Helsinque — que a vida conserva valor absoluto. A prudência não exige silêncio; exige lucidez e coragem para dizer que existem fronteiras que não se negociam.
Muito interessante. Nunca havia pensado por esse lado, na moralidade como fator para decisão pela eutanásia e não só a doença/ condição de base. Proibir a doação de órgãos desses pacientes seria uma opção? (Dúvida real)