Obrigado, por enquanto.
Quando a gratidão carrega a dúvida: um ensaio sobre linguagem, confiança e vulnerabilidade
Algumas vezes na rotina de relação médico-paciente, escutei a expressão “Obrigado, por enquanto”. O conteúdo que vem depois da vírgula sempre me despertou uma curiosidade, um quê de desconforto, ou a tentativa de compreender seu significado.
Na busca da compreensão desse significado, não devemos nos limitar à construção gramatical. É preciso entender o cenário completo: diagnóstico de doenças graves, potencialmente fatais, em que a esperança de melhora obrigatoriamente passa por um longo processo terapêutico.
Tendo isso em consideração, partimos do princípio que a relação médico-paciente é naturalmente assimétrica.
Destarte, podemos levantar uma série de hipóteses: seria a expressão condicional uma tentativa de reequilibrar a relação? Um esforço de autonomia – uma forma de resistência indireta ou de proteção emocional? Poderia refletir uma mistura de gratidão e reserva, uma confiança condicional, ou o desejo de limitar a interação? Estaria ligada a sentimentos de insegurança, medo do prognóstico, frustração com a situação? Ou seria um reflexo da tensão natural entre a vulnerabilidade do paciente e da incerteza da medicina?
A assimetria da relação médico-paciente decorre da condição de detentor do conhecimento, moldada por fatores culturais locais. No contexto latino-americano, carrega traços de hierarquia e deferência. Dessa maneira, poderia a condicional gramatical ser a expressão de uma dúvida sem rompimento da etiqueta social? Consequentemente, poderia essa dúvida gerar um desconforto por representar um questionamento de autoridade? Seria justo rotular essa gratidão condicional como absurda, considerando o contexto de um atendimento médico diligente? Estaríamos diante de uma ameaça velada?
Nas dinâmicas de aprendizado de comunicação de más-notícias aprendemos a importância da comunicação não verbal – amplamente estudado por Albert Mehrabian. Em seu estudo Inference of Attitudes from Nonverbal Communication on Two Channels (1967), ele descreve uma clássica proporção:
“It is suggested that the combined effect of simultaneous verbal, vocal, and facial attitude communications is a weighted sum of their independent effects— with the coefficients of .07, .38, and .55, respectively.”
Dessa maneira, em contextos emocionais, os elementos não verbais tornam-se dominantes.
Nas situações do “Obrigado, por enquanto”, se considerarmos a pragmática linguística – ou seja, como o contexto contribui para o significado -, não identifiquei tom, expressão corporal ou histórico relacional sugestivos de ameaça. Portanto, a hipótese de ameaça velada pode ser refutada.
Sigamos a dissecção das demais hipóteses.
Michael Balint, psicanalista húngaro, tem em sua obra The Doctor, His Patient and the Illness (1957) uma das pedras angulares da relação médico paciente. Já Elisabeth Kübler-Ross, psiquiatra suíço-americano, em On Death and Dying (1969), descreve os estágios do luto, como uma forma de compreender como pacientes e familiares lidam com doenças terminais ou graves. Ambas as obras estão presentes nos currículos das melhores faculdades de medicina - retirá-las das prateleiras pode nos ajudar nessa busca.
Balint foca na dinâmica emocional entre o médico e o paciente. Enfatiza que o médico é, ele próprio, um agente terapêutico, uma “droga”.
“Este é, pois, o objetivo principal desta obra: descrever certos processos da relação médico-paciente (os efeitos secundários indesejáveis e involuntários da substância chamada “médico”) que provocam sofrimento desnecessário, irritação e esforços infrutíferos tanto do paciente quanto do seu médico.”
Nessa relação o paciente expressa necessidades ou resistências – nem sempre claras – em formas de “propostas” ao médico. Nesse contexto o “Obrigado, por enquanto”, seria uma negociação de espaço emocional.
Kübler-Ross descreve os cinco estágios do luto (negação, raiva, barganha, depressão, aceitação) como uma forma de compreensão, nem sempre dessa maneira linear, de como os pacientes e familiares lidam com doenças terminais ou graves.
“Os membros da família experimentam diferentes estágios de adaptação, semelhantes aos descritos como referência aos nossos pacientes. A princípio, muitos deles não podem acreditar que seja verdade. Pode ser que neguem o fato de que haja tal doença na família ou “comecem a andar” de médico em médico na vã esperança de ouvir que houve erro no diagnóstico. Podem procurar ajuda e tentar certificar-se, junto a quiromantes e curandeiros, de que não é verdade. Podem programar viagens caras a clínicas famosas e médicos de renome, só encarando aos poucos a realidade que pode mudar drasticamente o curso de suas vidas.”
Pela lente de Kübler-Ross, o “por enquanto” pode refletir um estágio de negação – (“não quero me comprometer, pois isso significa aceitar a gravidade da moléstia”) - ou barganha – (“vou seguir o tratamento, mas espero que algo mude”).
Pode também ser uma sutil projeção de raiva, uma frustração, e como profissionais de saúde, devemos compreender como direcionada à situação e não, necessariamente, a nós. Não podemos ignorar que essa frustração e desconfiança pode ser sistemicamente alimentada por experiências prévias negativas com o sistema de saúde em si – falho em nossa realidade nacional.
Em estágios de depressão, o “por enquanto” pode expressar retração emocional, o peso da doença permitindo uma gratidão limitada.
Outra linha interpretativa nos leva a considerar a expressão como um vício de linguagem – um fenômeno linguístico em que uma expressão ganha função específica dentro de um contexto social, cultural ou situacional, muitas vezes além da intenção consciente de quem a usa.
No contexto latino da relação médico-paciente, a sociolinguista argentina Diana Bravo classificaria a expressão como um caso de polidez negativa: manter distância, respeitar, minimizar a imposição para preservar a imagem pública – uma forma indireta de evitar confrontos. Leo Hickey, outro estudioso de pragmática, destaca que o “por enquanto” suaviza interações tensas, por meio da ambiguidade.
Ao fim dessa reflexão, a expressão “Obrigado, por enquanto”, parece traduzir uma tentativa de manutenção da harmonia (Bravo, Hickey), face aos achados não verbais (Mehrabian), em uma interação assimétrica (médico-paciente), em meio às emoções do luto (Kübler-Ross), tendo o “médico-droga” (Balint) como a ponte para que a relação evolua em direção à confiança.