Por que escrevo
“Um poema é a expressão de ideias ou sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois ninguém fala em verso.” Fernando Pessoa
Gostaria de saborear a vida escrevendo. Prosa, poesia, palavras soltas e desgarradas, arredias e independentes de minha vontade. Se a vida é inexata, minha falta de talento e de estudo literário torna-me cego — ou imune — às exigências formais e estéticas indispensáveis à boa escrita.
Quando escrevo, é em parte como uma criança desenha seus sentimentos; os pequenos põem toda a sua força vital naquilo que fazem, compenetrados. As palavras sublimam meus sentimentos. Têm-me em seu poder, sem controle. Elas me vêm como uma torrente, uma ligada à outra, em rodamoinhos concêntricos de pensamentos. Alguém controla, por acaso, um turbilhão? A criança não se importa com proporções, métricas e regras — pelo menos enquanto se mantém pura a inocência infantil. Picasso teria dito: 'Levei anos para aprender a desenhar como uma criança'. Acontece que, aos quinze, o gênio já desenhava como Michelângelo.
Não escrevo para cativar, mas para capturar a mente — tal qual uma arapuca, mas que, presunçosamente, quer libertar ao invés de aprisionar.
Escrevo, portanto, para ninguém ler. E, se por mero acaso alguém me ler, sentirá diverso do que sinto ao escrever. Minhas palavras serão inúteis ajuntamentos. Mas não posso impedir-me de frasear. Escrevo para mim mesmo, na minha gaveta — real ou virtual. Como um pintor que expõe nalgum lugar lúgubre e sem luz para ninguém admirar. Escrevo por medo do desaparecimento, do esquecimento. Recuso-me a não deixar vestígios, ou, ao menos, a não evanescer sem antes riscar a realidade com uma lasca de pensamento, com uma rachadura de palavra. Quero me fazer ruído, resíduo, memória, fissura no tecido invisível do mundo. Desejo não ser lido, mas sentido.
Plágio de mim mesmo, escrevo sorrateiro, escondido da minha existência pueril. Transpareço minha alma pensante de luz e sombra, estagnada no papel. Como uma nota musical, cada palavra escrita termina suspensa, que ao ser entendida, desaparece na mente que a lê. Minha única esperança é que, por um erro ocasional e involuntário, como uma mutação, essa consciência tocada se altere, e nunca mais regresse ao estado do que antes fora. Como um cristal trincado. Não pela súbita compreensão do que escrevi, mas pela sua própria leitura diversa e estranha à minha vivência. Leia-o por sua conta e risco. Que a minha desinteligência encontre uma inteligência onde florescer, como terra fértil. O texto é um meio, não um fim
Minha secretíssima vingança pessoal contra a impermanência.
Nada físico persiste, fadado ao pó comum.
Nenhum sentimento resiste ao desaparecimento dos mais próximos.
Restamos sós no mundo.
Tudo o que fomos será esquecido sem deixar rastro.
Nenhuma faceta terrena será rememorada.
Não somos mais que um sopro de insistência.
Minha gaveta onde repousam minhas páginas é meu túmulo de alabastro;
as palavras, meus alvos ossos descarnados das vicissitudes do invólucro da matéria não essencial.
Póstuma compreensão, simulacro esvaziado da minha existência, permaneço nas páginas não apagadas, persiste minha consciência.
Traslado de vivências pregressas, meu núcleo,
meu eu numenal decifrado.
Tive comigo um pensamento desesperado: a vida é apenas um lampejo entrecortado de momentos fugidios. Nossa existência é um caminho desequilibrado sobre a corda bamba — uma extremidade fixa no passado, enevoado e esquecido; a outra, presa à consciência do instante perpétuo.
Essa imagem jamais é exata, perfeita ou límpida, pois o pleno saber de si é reservado apenas às mentes extraordinárias. Somos simulacros de nós mesmos.
Nós, vulgares relegados à normalidade, sobrevivemos satisfeitos no presente dos desejos e anseios; vez nalguma senti-me absolutamente completo.
Talvez, se assim ocorresse, deixaria de existir — pois a corda de minha vida não haveria onde mais se prender. Cairia no abismo de ser sem substância.