Práxis
A armadilha de tratar aquilo que é complexo e importante como corriqueiro tem consequências. Mas também há maneiras de evitá-la.
Na medicina, são as exceções que muitas vezes despertam fascínio. Mas é a rotina que sustenta a prática médica — não pode jamais ser negligenciada. Um médico que despreza a sistematização e a repetição consciente expõe seus pacientes ao risco. Cada ato médico, desde uma aparente simples injeção, uma entrevista clínica (anamnese), ou uma cirurgia complexa como um transplante de órgãos, deve obedecer a uma regra primeira: a disciplina da rotina sistematizada, o encadeamento rigoroso do raciocínio e dos gestos repetidos à exaustão. A meta? A perfeição.
A verdadeira maestria, o suprassumo, está em tornar essa rotina interessante — ao invés de maçante. E isso vale também para a vida cotidiana. Ao transformar a repetição em algo estimulante, reduz-se a chance de passar despercebidos detalhes que, para olhos destreinados, poderiam parecer insignificantes, mas que podem conter pistas valiosas. O tédio embaça os sentidos e embota o raciocínio — ferramentas essenciais para o médico que busca desvendar o inusitado. Caso contrário, corremos o risco de não perceber as “centelhas silenciosas e particulares de revelação” de K. Ishiguro.
Diagnósticos difíceis e cirurgias desafiadoras impressionam, podem ser mais gratificantes e chamar mais a atenção, mas na realidade não são eles que definem o grande clínico ou cirurgião. A excelência está na constância: na obtenção de bons resultados dia após dia, paciente após paciente. É a luta diária e constante que nos define. O verdadeiro médico sabe que, em medicina, nada é trivial, corriqueiro ou simples. Tudo exige atenção, presença, cuidado.
A arte de tornar o complexo aparentemente simples é ilustrada pela célebre história de Picasso. Ao ser reconhecido por uma admiradora em um restaurante de Paris, o artista desenha um esboço em um guardanapo. A moça, encantada, pede para comprá-lo, mas se espanta com o preço, ao que Picasso replica: “Levei a vida inteira para conseguir desenhar isso.” Assim também é a medicina: por trás do ato preciso e seguro, aparentemente simples, há uma vida inteira de estudo, árduo esforço e refinamento.
Os discretíssimos sons da ausculta pulmonar devem ser apreciados pelo clínico da mesma forma e com igual intensidade e zelo desde o primeiro paciente até o derradeiro. A seriedade e o máximo rigor em seus tempos operatórios devem acompanhar da igualmente o cirurgião da primeira incisão até o fechamento da ferida cirúrgica. Precisamos cultivar uma urgência silenciosa em preservar o que é ideal, mergulhando totalmente nossos sentidos — mente e corpo, pensamentos e ações — nos menores detalhes do cuidado médico. Que seja uma obsessão, paradoxalmente salutar, mesmo que a perfeição nunca seja plenamente alcançada, como notou o poeta e médico Rafael Campo:
“The body told me, in its broken
voice,
that healing doesn’t mean
perfection.”
Mas rogo para que não cometamos o terrível engano da vaidade, pois para o médico não há espaço nem tempo para ela, pois a qualquer instante somos lembrados da doença incurável, da morte que espreita e chega desavisada, inesperada, figura que escarnece de quaisquer resquícios de soberba. Somos íntimos da indesejada das gentes, ao mesmo tempo nosso fardo e nossa salvação. Ela nos salva de nós mesmos, coloca-nos em nosso devido lugar, onde impera a humildade e o respeito aos nossos limites. Somos tudo; e em nada nos tornamos.
Esse sentimento de enxergar a beleza nos pequenos momentos do cotidiano, e não deixar de se admirar com a infinita complexidade da leveza dos menores atos, é a chave para manter o espírito jovem e a mente afiada.