Reescrevendo os livros de nossa biblioteca: ficção, ciência e os limites do humano.
O DNA, CRISPR e o Futuro que (Talvez) não controlamos.
Sob um límpido céu azul, um formoso helicóptero corta o ar com sua silhueta prateada. Por trás a câmera captura a máquina contra o despertar de uma majestosa ilha tropical. A cena é rompida pelas majestosas notas orquestrais crescentes de “Journey to the Island”, de John Willians. Logo depois, no coração da ilha, em um templo erguido pela ambição científica, John Hammond, impecável em seu terno branco, segurando sua bengala com uma ponta de âmbar que contém um mosquito fossilizado, apresenta em um tom empolgante, seguro de si – quase infantil – seu projeto visionário.
É certo que a maioria dos leitores recordar-se-á que essa introdução remete à história de Jurassic Park (1990), escrita por Michael Crichton, mas imortalizada no cinema por Steven Spielberg em 1993.
A ficção científica não tem amarras, mas é notório que ela se baseia em princípios que lhe asseguram algum tipo de verossimilhança com a realidade, caso contrário seria fantasia. O funcionamento do código da vida, o DNA, descrito por James Watson e Francis Crick em 1953, por vezes pode ser de difícil compreensão. No livro The Double Helix (1968), James Watson descreve com uma potente linguagem de romance os caminhos que foram desbravados para a descoberta científica laureada pelo Nobel de Fisiologia e Medicina em 1962. Certamente uma leitura obrigatória.
Entender basicamente o DNA, o autor silencioso de cada ser vivo, seus mecanismos e como ele origina a vida requer uma boa dose de abstração. Para entendê-lo profundamente há necessidade de muito estudo e dedicação, haja vista o vastíssimo campo teórico-prático que nos foi apresentado como uma centelha pelo professor Salmo Raskin nos bancos de genética da faculdade de medicina.
Imagine uma biblioteca imensa, com prateleiras se estendendo até o horizonte. Cada livro é a história de um ser vivo: seu pai, uma árvore, eu. Seus textos não são compostos pelas letras de nosso alfabeto alfanumérico, e sim A, T, C e G. Esses tijolos da vida são combinados em genes, os capítulos dos livros, que nos contam como respiramos, nosso tipo de sangue ou qual a cor de nosso cabelo. O DNA é o guardião dessa biblioteca. Dentro do núcleo de cada célula ele trabalha como um bibliotecário, organizando as instruções e tentando garantir que sejam lidas e copiadas corretamente quando uma célula se divide ou um filhote nasce.
Watson e Crick nos permitiram entender o alfabeto da vida, ler seus capítulos, entender paulatinamente suas histórias. Com isso aprendemos quais doenças são causadas quando ocorrem erros no texto, ou que espécies foram perdidas com o desaparecimento de algum livro. Em nossa inerente engenhosidade: por que não re-editar um texto defeituoso? Ou quem sabe tentar reescrever um livro desaparecido?
John Hammond em Jurassic Park buscou reescrever livros desaparecidos, trazer de volta dinossauros extintos, sempre confidente em uma atmosfera de absoluta segurança e controle:
“10000 volts fences...full 50 miles of perimeter fences…concrete moats… motion-sensor tracking systems…only females, so it´s impossible to breed…”
“Relax, try and enjoy yourself”
O fantástico empreendimento não deixou de sofrer consternações de Ian Malcolm, matemático e teórico do caos, interpretado por Jeff Goldblum:
“John, the kind of control you´re attempting is not possible. If there´s one thing the history of evolution has taught us, it is that life will not be contained, life breaks free, expand to new territories, crashes through barriers, painfully maybe, even dangerously…life finds a way.”
Mais poderosa do que a máquina copiadora de Jurassic Park, imagine uma ferramenta que possibilitasse reescrever um capítulo de uma história, ou ainda mais precisamente substituir uma frase ou palavra. Tal ferramenta já foi construída e sua descoberta está contada no livro The Code Breaker, de Walter Isaacson, publicado em 2021. Jennifer Doudna, bioquímica, teve sua curiosidade científica aguçada durante sua infância no Havaí. O livro descreve muito bem as bases que possibilitaram a descoberta, sua influência pelo livro de Watson, a colaboração e competição entre os pares da ciência, a visualização dos potenciais benefícios, assim como as grandes implicações éticas do uso obscuro da tecnologia. O artigo científico que descreveu a utilização da ferramenta CRISPR-Cas9 como uma ferramenta de edição genética em humanos, publicado em 2012, foi uma revolução biotecnológica. Essa técnica de edição, desenvolvida ao lado de Emmanuelle Charpentier foi agraciada pelo Nobel de Química em 2020.
A CRISPR é a caneta mágica que possibilita a reescrita dos livros da vida. Usando uma molécula de RNA como guia, ela é capaz de encontrar exatamente a linha, a letra que precisa ser alterada. Ela guia a tesoura Cas9 que corta o DNA com precisão cirúrgica. Uma vez cortado, o bibliotecário DNA tentará de forma diligente seu conserto, e é justamente nessa hora que podemos inserir uma nova letra, uma nova palavra, ou até um trecho inteiro. É uma tecnologia considerada de ampla acessibilidade, com potencial de mudar o mundo, de cura de doenças genéticas, mas com um sem-número de pesadelos éticos.
Em 7 abril de 2025 a revista TIME publicou uma matéria intitulada “The Return of the Dire Wolf”, com uma capa com a palavra Extinct. O anúncio foi da criação de três lobos que foram geneticamente modificados para se assemelhar ao lobo terrível (dire wolf), espécie extinta há 10.000 anos.
Apesar da grande repercussão midiática, o termo desextinção empregado na matéria foi tema de críticas, já que não foi a clonagem de um animal extinto que foi realizada, conforme pontuado por Salmo Raskin: “Trata-se de edição gênica; ou seja, eles mexem na genética de um animal vivo para que ele tenha características de um animal extinto.”
Como uma startup na área de edição genética, portanto em busca de recursos, a Colossal Biosciences acabou utilizando as ferramentas de mídia que geram esse tipo de críticas. Entretanto, não podemos deixar de reconhecer que seu mérito é o pioneirismo no uso da tecnologia de edição genética CRISPR-Cas9 em vários pontos do DNA ao mesmo tempo, na tentativa de inserir trechos do DNA de espécies extintas.
Na reportagem da Time, minha atenção foi capturada por algumas falas de Beth Shapiro, chefe do escritório de ciências da empresa:
“We are an evolutionary force at this point…. We are deciding what the future of these species will be….”
Os animais vivem em uma reserva ecológica secreta, com 20.000 acres de extensão, “surrounded by a 10-ft. fence”, equipada com “an extreme-weather shelter”, e com “natural dens where the wolves can satisfy their innate desire for a secure retreat”.
No melhor momento a là John Hammond, Shapiro continua:
“They’re not capable of living in the wild…. They’re not going to be able to get a splinter without us finding out”
Paige McNickle, gerente da criação de animais da empresa, também teve seu momento de confiança infantil:
“Our protocols ensure that people are never in a situation where the wolves might be frightened or become aggressive toward their caretakers.”
Em Jurassic Park, o teórico do caos é suavemente satirizado pelos cientistas sobre suas dúvidas acerca da reprodução dos animais – os dinossauros do parque eram somente fêmeas. Para evitar a reprodução dos lobos da Colossal, os cientistas buscam “monitor the female estrous cycles and separate the animals at key times or employ contraceptive implants that keep the wolves from producing young…”. A resposta de Ian Malcolm na ficção foi: “Life finds its way”.
Romulus, Remus e Khaleesi, os lobos criados pela empresa, não são cópias do livro Dire Wolf de nossa imaginária biblioteca, são modificações do texto do livro Lobo-cinzento, são manipulações genéticas orquestradas pelos humanos. Não temos a história original sendo recontada. Nessa vasta biblioteca do DNA, o texto nem sempre é perfeito. A troca das letras pode se dar por engano, ou atualmente por nossa manipulação. Essas modificações podem ser carregadas de uma geração a outra, ora trazendo benefícios, ora trazendo doenças ou consequências ainda desconhecidas.
Percebam a patente intersecção da ficção com a realidade. A competição entre grupos de cientistas, sob os auspícios de empresas ou universidades: em Jurassic Park, a Ingen, empresa de Hammond, compete com a Byosin. A descoberta do CRISPR-Cas9 por Doudna e Charpentier envolveu a competição entre diversos grupos de cientistas, destacadamente Feng Zhang. Agora a Colossal Biosciences ganha destaque na mídia e na corrida dos financiamentos multimilionários por capitais de risco.
A confiança da Colossal Bioscience – “até uma farpa será notada” - ressoa em Jurassic Park, o “nós temos tudo sob controle” é o resumo da ficção e da vida real. Na ficção a natureza, imprevisível, provou o contrário. A natureza é capaz de seguir um roteiro editado por humanos ou ela cria a própria história? Há um peso ético em reescrever capítulos que ainda não entendemos, em uma história que a natureza pode escrever sozinha.
Essas preocupações éticas foram expressas por Jennifer Doudna ao longo de sua biografia, mas que me parecem somente ecoar histórias, como o lamento de Victor Frankenstein, o cientista de Mary Shelley, que cria uma criatura e depois teme sua força incontrolável.
Watson e Crick nos ensinaram a ler o livro da vida, Doudna nos deu a caneta para editá-lo. Não me parece que nosso maior desafio seja técnico, mas ético. Há um eco de arrogância no ar. Esses cientistas representam o supra-sumo da habilidade científica e da capacidade do ser humano. Mas todos os verdadeiros cientistas sabem que a verdade científica é parceira inseparável da humildade. Qual o limiar da fantasia para a ficção, ou da ficção para a realidade?
(Foto tirada pelo autor durante visita ao Field Museum, maio de 2025.)
Os originais da biblioteca: fósseis do Dire Wolf estão em exposição no Field Museum, em Chicago — Estados Unidos. Estima-se que esses animais tenham prosperado durante a Era Glacial graças à cooperação: caçavam e viviam em bandos, o que os tornava mais adaptados aos desafios do ambiente hostil. Acredita-se que, em sua época, eram tão numerosos e familiares quanto os cães que nos acompanham hoje.