A possibilidade da vida renovada por um transplante, simbolizada pela cor verde, é centrada no Brasil no dia 27 de setembro — Dia Nacional da Doação de Órgãos — instituído por decreto presidencial em 1997, durante a gestão de Henry de Holanda Campos à frente da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, em alusão a São Cosme e Damião.
Os santos gêmeos são considerados padroeiros da medicina, cirurgiões e farmacêuticos e sua vida e martírio estão relatadas na coleção hagiográfica Legenda Áurea (1260 a 1275), de Jacobus de Voragine. Frade dominicano, cronista e escritor italiano do século XIII, residente da costa de Gênova, Itália, compilou cerca de 180 vidas de santos, organizadas segundo o calendário litúrgico, em uma narrativa literária que descreveu suas vidas, suas virtudes, seus milagres e, frequentemente, seus martírios. Em virtude da tradição dominicana, conhecida por sua ênfase na pregação e no ensino, a obra foi amplamente difundida na Europa medieval, servindo como fonte para sermões, arte sacra e devoção popular.
Consta na obra que São Cosme e Damião “instruídos na arte da medicina, receberam do Espírito Santo tamanha graça que curavam todas as enfermidades, não só dos homens, mas também dos animais, sem jamais receber pagamento”. Esses atos de caridade se alinhavam com os valores cristãos primitivos, permitindo também que os médicos usassem a sua profissão para evangelizar, especialmente durante epidemias, quando cuidavam de doentes abandonados por médicos pagãos.
Voragine descreveu que os irmãos foram martirizados sob o reinado do imperador Diocleciano, por volta de 287, época de repressão sistemática aos cristãos. Ele relata três milagres atribuídos a eles, um deles em que eles lhe transplantaram a coxa de um mouro recém-sepultado no cemitério de São Pedro ad Vincula — “…praecidentesque coxam infirmi loco ejus coxam Mauri inseruerunt…” — substituindo a carne doente pela saudável. Ao acordar, ele estava curado, e no túmulo encontraram sua coxa colocada no lugar da do mouro.
A vida, obras e milagres dos irmãos foram representados iconograficamente em pinturas, retábulos e afrescos de diversos artistas, estes considerados por João Paulo II “apaixonadamente dedicados à procura de novas epifanias da beleza”. Um deles, Fra Angelico, foi proclamado em 2000, por João Paulo II como o santo patrono dos artistas, em reconhecimento como um modelo da perfeita harmonia entre a fé e a arte.
Fra Angelico, cujo nome de batismo era Guido de Pietro, nasceu no início do Renascimento na região da Toscana, Itália. Foi dominicano como Voragine e possuiu um grande talento para a pintura. Profundamente influenciado pela teologia dominicana, enraizada na obra de São Tomás de Aquino, recebeu o apelido “Angelico” postumamente, em razão de elogios à sua piedade.
A obra de Aquino enfatizava a razão, a contemplação e a pregação para difundir a fé; já Fra Angelico via a sua arte como uma forma de pregação visual, refletindo a ideia tomista de que a beleza conduz a Deus (via pulchritudinis), era a fusão entre arte e fé.
Em A Cura do Diácono Justinian por São Cosme e São Damião (c. 1438-1440), Fra Angelico retrata os santos gêmeos operando o diácono Justiniano, em uma cena considerada a primeira citação metafórica no ocidente de um transplante. Essa pintura em têmpera sobre madeira faz parte da predella do Retábulo de São Marcos — construção de madeira colocada na parte posterior dos altares — e atualmente está localizada no Museu de San Marco, Florença, Itália.
A obra evoca uma atmosfera etérea e divina, nela os santos gêmeos realizam um transplante na perna gangrenosa ou cancerosa de um sacristão da Igreja de Roma dedicada a eles. Essa história é posterior ao martírio dos santos (século III), e são representados na cena como “anjos”, não têm pernas, simbolizando a intervenção divina. Nela a perna negra recém transplantada contrasta com a pele clara.
Luz suave e composição serena são típicas de Fra Angelico, com paletas de cor pastel e luminosas. As auréolas de fundo dourado são utilizadas para simbolizar o divino — características góticas — mas a obra incorpora a perspectiva linear e anatomia realista do Renascimento, com a espiritualidade e a delicadeza do estilo do artista. Ele conseguia adotar o humanismo renascentista enquanto mantinha a espiritualidade medieval.
Na pintura, um detalhe chama a atenção, que embora pequeno, dá um toque de realismo que humaniza a cena — os sapatos à beira da cama. O simbolismo intencional desses sapatos, cuja observação me foi despertada pela Dra. Cristina Von Glehn, enriquece a interpretação simbólica da obra no que ela representa, a complexidade dos transplantes.
Se uma perna estava condenada, por que dois sapatos? Por que e quem os colocou lá?
Colocar dois sapatos à beira-da-cama de uma pessoa com uma perna condenada é claro sinal de confiança, de otimismo que o paciente estará pronto para caminhar com ambas as pernas. O “caminhar” pode ser entendido de forma literal — voltar a andar — ou de forma metafórica — retomar a capacidade de trabalhar e viver plenamente. Essa interpretação ressoa no quem os colocou lá, que deixaram tudo preparado para que o extraordinário aconteça.
Nos transplantes modernos, esses simples sapatos simbolizam os profissionais de saúde que operam nos bastidores: corpo de enfermagem, médicos de outras especialidades, técnicos de laboratórios de compatibilidade genética, fisioterapeutas, nutricionistas, equipes de doação de órgãos, profissionais de logística — todos fundamentais. São a reflexão da humildade e colaboração silenciosa.
O contraste da cor da pele é evidente. É impossível não perceber que se trata da perna de outra pessoa. Esse detalhe exibe outro ponto fundamental: a importância dos doadores de órgãos. Figuras anônimas que oferecem parte de si para salvar outra vida.
Acredito que esse otimismo inerente é característica dos profissionais que escolhem seguir o caminho dos transplantes, pois é quase uma característica vital e essencial, especialmente em uma área complexa, com interação de diversos agentes, inserida em um sistema desafiador como o SUS, onde os profissionais enfrentam escassez de recursos, mas persistem com esperança.
Fra Angelico representou o transplante da perna como um milagre divino, mas a simbologia dos sapatos se alinha muito com a realidade dos transplantes dos dias atuais. Pacientes debilitados recuperam a qualidade de vida sem perceber a complexidade do que aconteceu com eles, e isso coaduna muito com os ensinamentos de Thomas Kuhn, filósofo da ciência (1922-1996), que em sua A Estrutura das Revoluções Científicas (1962) descreveu que as rupturas de paradigmas que transformam a visão do mundo vêm com os avanços científicos, podendo ser tão revolucionários que evocam uma sensação de maravilha comparáveis a milagres.
O “extraordinário” de um transplante bem-sucedido é o resultado de avanços científicos, colaboração interdisciplinar, otimismo profissional e superação de barreiras logísticas e sociais. Apesar dos desafios (rejeição imunológica, captação de órgãos, infraestrutura), o transplante é "extraordinário" por sua complexidade e impacto transformador, devolvendo a vida aos pacientes.
Os sapatos de Fra Angelico sugerem a fé no sucesso, o otimismo presente e perene. São um “Convite à caminhada”, não só para o paciente, mas para a sociedade, incentivando a doação de órgãos como um ato de solidariedade.