Um falso cognato de dimensão poética.
A relação poética de Ingenuity, da engenhosidade com a inocência.
Tenho o costume de dizer aos meus filhos que as palavras importam, que precisamos pensar e refletir sobre sua aplicação. Devemos nos ater ao significado estrito delas, não alargando seus sentidos e procurando utilizar as palavras adequadas ao que queremos expressar - o que, obviamente, requer uma formação vocabular e cultural mais ampla, expandida. Eis que surge a exigência de aprender as palavras mais apropriadas, seja por meio do ensinamento dos pais, seja com a leitura.
Como um admirador do espírito da exploração espacial, em uma recente incursão na área, estava me aprofundando na missão do Ingenuity, um helicóptero que a Agência Espacial Norte-Americana (NASA), pousou em 2021, em conjunto com o rover Perseverance na superfície do planeta vermelho. Observamos ambos nessa famosa selfie, creditada à NASA/JPL.
A missão bem-sucedida do Ingenuity, que se tornou o primeiro objeto a voar em Marte, era cercada de desafios, já que a atmosfera marciana tem apenas 1% da pressão da terrestre. Utilizando o Perseverance como base de retransmissão de dados, ele superou em mais de 33 vezes o número de voos inicialmente planejado, completando 72 voos históricos. Cumpriu seu objetivo primário – a demonstração da viabilidade da tecnologia de voô - e deu suporte ao Perseverance, pois permitiu obter fotos aéreas e identificar pontos de interesse científico para onde o rover poderia se dirigir com segurança, a fim de realizar suas análises de solo.
A reflexão parte do nome de batismo do helicóptero. A tradução correta do Ingenuity para o português é “engenhosidade”; porém, devido à semelhança gráfica e sonora entre ingenuity e “ingenuidade”, podemos classificá-las como falsos cognatos. Ambas têm a mesma origem latina (ingenium, que significa talento natural ou inteligência), mas evoluíram em direções semânticas distintas nas línguas inglesa e portuguesa.
Ingenuity, em inglês, significa “engenhosidade”, “criatividade” ou “habilidade inventiva”. Já em português, “ingenuidade” traz um significado bem diferente, referindo-se à inocência, simplicidade ou falta de malícia, com certa conotação de credulidade.
O interessante, nesse caso, é o convite à reflexão: não seria a “ingenuidade” (inocência, pureza de visão) que alimenta a ingenuity (capacidade inventiva) da humanidade, que nos levou à Lua, à vida em órbita baixa na Estação Espacial Internacional e que está nos conduzindo a Marte?
O espírito explorador do ser humano nasce de uma ingenuidade essencial – a inocência de acreditar que o impossível é apenas questão de tempo-, misturada à astúcia de torná-lo possível. A repetição desse padrão, nos mais diferentes ciclos da humanidade - como nas migrações continentais do Homo sapiens a partir da África, por ocasião das grandes navegações ou, agora, com a exploração espacial - só confirma que no caso específico dessas palavras, a evolução semântica criou um perfeito caso de um falso cognato com poéticas relações.