Um telegrama que cristaliza o ethos de uma era.
Quando a cirurgia alcançou sua dimensão épica, e a medicina reafirmou-se como arte em sua mais elevada expressão.
“Surgery is both an art and a science.”
— Denton Cooley
Livros de memórias bem escolhidos são preciosos: o supra-sumo da visão de pessoas ímpares, e uma potencial fonte de ensino e de reflexões perenes. 100.000 Hearts é uma dessas obras – intensa, lúcida e repleta de passagens marcantes.
Denton Cooley, nascido em 1920, no Texas (EUA), integra um seleto grupo dos fora-de-série. Teve participação ativa no alvorecer da cirurgia moderna, nos idos das décadas de 50-60. Foi uma era de grandes cirurgiões, munidos de sagacidade, espírito desafiador e inovador, que pela primeira vez podiam entrar em cavidades, realizar grandes reparos, corrigir defeitos da fisiologia ou tentar extirpar consequências patológicas.
Como cirurgião cardíaco, Cooley presenciou as cirurgias de correção de defeitos cardíacos congênitos, de doenças vasculares, o desenvolvimento de meios diagnósticos (cateterismo cardíaco) até o momento em que o coração podia ser literalmente aberto, com a utilização de máquinas de circulação extra-corpórea.
Conviveu no Texas com outro dos grandes, Dr Michael DeBakey, com quem teve uma relação no mínimo muito conflituosa, ou como em palavras próprias, “personalidades simplesmente incompatíveis, assim como as ambições e os egos”. Acabaram por se reconciliar no final de suas vidas, com o reconhecimento de que a rivalidade incrementou a reputação de ambos e moldou suas carreiras.
Uma passagem particularmente interessante ocorreu em 1967, quando o primeiro transplante cardíaco, na África do Sul, realizado por Christiaan Barnard capturou a imaginação do planeta. Foi provavelmente o acontecimento médico de maior repercussão na história. O primeiro transplante não foi uma surpresa em si, desafios éticos e legais do transplante já eram discutidos, e invariavelmente o primeiro transplante era somente questão de tempo para ser realizado em algum centro.
O feito de Barnard gerou inveja em Cooley: “Frankly, I was envious of Chris Barnard´s success. I regreted very much that I had not been the first”.
No dia seguinte à notícia do feito histórico de Barnard, Cooley o enviou um telegrama:
“Congratulations on your first transplant, Chris. I will be reporting my first hundred soon”.
Acredito que esse telegrama de Cooley a Barnard não é uma mensagem, é um manifesto, um instante cristalizado que revela o espírito de uma era. A brevidade da mensagem exigida pelos telegramas contrasta com a profundidade reveladora das palavras escolhidas, quase que prova da personalidade dos grandes cirurgiões, os definidores de era: ambição, confiança e respeito.
Ambição ao projetar os seus 100 transplantes, confiança que vai atingi-la. A autoconfiança é uma das características essenciais para o cirurgião, especialmente em intervenções de grande porte, em que são orquestradores dos mais diversos riscos. Sem essa característica, torna-se impossível enfrentar os desafios éticos, técnicos e emocionais envolvidos na realização de procedimentos tão delicados.
Interpreto o envio do telegrama como uma contradição ao sentimento de inveja relatado pelo próprio Cooley. A inveja é um sentimento negativo, Cooley a catalisou para um sentimento muito mais nobre, o do reconhecimento da existência de outro “grande”. É um tributo à excelência alheia, pois a competitividade é o motor do progresso coletivo.
Logo após o transplante de Barnard, Cooley iniciou sua série; pacientes de todas as partes buscavam tratamento no Texas Heart Institute. Os dias iniciais após os primeiros transplantes acalentaram seu ego.
“In those days early days, transplant surgeons were glorified like movie stars or other celebrities. In my own case, the adulation was sometimes uncomfortable but also highly gratifying, so I rather enjoyed it.”
Paulatinamente, o ego foi se esvaziando, e a projeção de futuro – em que os transplantes seriam quase rotineiros – foram confrontados com o inexorável processo de rejeição, que só conseguiu ser melhor controlado com o advento da ciclosporina no final da década de 70.
O livro ainda nos brinda com um daqueles registros únicos e precisos que somente um aguçado olhar cirúrgico pode gerar.
“I´ve always believed that success in any field starts with desire, persistence, and hard work. Surgery is both an art and a science. It depends on book knowledge and practical skill, as well as good judgment and the ability to handle the unexpected. I learned early in my career that time in the operating room is precious. Even just a few seconds can make the difference between patient´s life and death.”
A autobiografia de Denton Cooley propicia um olhar apurado sobre tempos empolgantes que conferiam aos médicos um status quase mítico, de super-heróis. Tempos que não existem, e não existirão mais, e portanto históricos. Esses relatos se tornam atemporais e portanto, a arte em sua mais pura expressão. Sua história ressoa além de seu tempo, fazendo-nos refletir sobre o que significa criar, competir e transcender. E, como verdadeiros artistas, Cooley deixou sua marca em tempo e memória.