Véu das memórias
Somente nos reconhecemos como somos, em parte ou inteiros, pela lente de nossas memórias. Mas se elas nos faltarem, quem seremos?
"O juízo começa a falhar e a idade enfraquece a mente…"
"Não me reconheces? Sou eu, teu bobo. Tantas vezes brinquei contigo. Te lembras?"
Rei Lear, William Shakespeare — (Atos III e IV)
Existem coisas que temos como certas e absolutas, profunda e irrevogavelmente nossas, e nada supera a noção da permanência de nossa identidade, quem somos nós enquanto indivíduos. Sequer podemos imaginar o que é deixar de ser quem somos, porque não conseguimos alterar o passado que nos construiu — memória a memória —, para o bem ou para o mal, a experiência de ser quem somos. E, se por acaso tentarmos, caímos na armadilha da manipulação das memórias, que se mostram como tênues véus que adquirem novas formas e significados simplesmente ao observá-los. Quem nunca se decepcionou ao tentar repetir alguma especial experiência da infância, guardada com carinho no recôndito da mente? Agora, adulto, a experiência é frustrada, e em nada se parece com aquela da memória. Esta pode ser a mesma, mas o indivíduo nunca será — e tampouco suas vivências.
Por isso que o apagamento gradual e progressivo das memórias que enfrentamos nos pacientes com demência é de uma profundidade sem igual, tragédia máxima, porque perdemos o ente querido ainda em vida, de certa forma deixando de ser ele próprio — quem ele é —, gradual e inexoravelmente. Torna-se uma sombra de si, não se reconhecendo no espelho do momento presente. Não vê o que é e o que poderia ter sido, apenas o que fora um dia; sua imagem é uma fotografia do passado.
“Perco aos poucos a noção do que fui, do que sou, do que penso ser… E tudo me escapa como uma névoa que esquece o próprio nome.”
O poeta Fernando Pessoa trata disso, da perda daquilo que há de mais íntimo: nós mesmos. Ao perder nossas memórias, inicialmente as mais recentes, vamos nos despedindo, pouco a pouco, da existência. Porém, de certa forma, voltamos às memórias mais profundas e antigas, e por alguns instantes quem sabe - supremo consolo, podemos reviver aqueles momentos da infância, quando éramos livres como se estivessem intocados? Talvez então, reconfortado, poderemos nos sentir com Carlos Drummond de Andrade:
“Esquecer é uma forma de liberdade”.