Os xenotransplantes receberam destaque na mídia com relatos de transplantes de rim, fígado, coração e de pulmão provenientes de porcos geneticamente modificados. O interesse no uso de órgãos de animais no lugar dos humanos não é recente; já na década de 60, diversas tentativas foram divulgadas. Entretanto, barreiras imunológicas e incompatibilidades fisiológicas se mostraram intransponíveis com a tecnologia e o conhecimento da época.
O advento da técnica de bioengenharia, conhecida por CRISPR, reconhecida com o Prêmio Nobel de Química de 2020, concedido a Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier, passou a permitir a edição gênica das principais barreiras moleculares à utilização dos xenoenxertos, responsáveis pelos processos de rejeição e de lesão do endotélio vascular, permitindo a atual aplicabilidade clínica experimental.
Impulsionados pela demanda de órgãos para transplante, os xenotransplantes são potencialmente redentores de uma série de benefícios à humanidade. No entanto, levantam questões éticas e antropológicas sobre potenciais benefícios e riscos que devem ser trazidas ao público de maneira correta.
Ao contrário dos primatas, que têm confinamento e reprodução mais complexos, os porcos são considerados uma boa fonte de órgãos e tecidos, pois possuem similaridades em tamanho, função, nutrição e fisiologia com os humanos. Além disso, têm períodos de gestação curtos (4 meses), alta fertilidade (10-14 por ninhada) e técnicas de confinamento, alimentação e biotecnologias de reprodução bem-definidas.
Como os porcos já são animais rotineiramente criados em escala industrial para a produção de carne, questionamentos contrários à sua utilização, a priori, possuiriam pouca repercussão no mundo ocidental. No entanto, surgem questões éticas sobre a licitude de utilizarmos e modificarmos geneticamente esses animais para nosso benefício. Essa reflexão não deve se restringir à dimensão técnica, é preciso considerar os limites éticos relacionados ao bem-estar animal, à biodiversidade e à razoabilidade do uso de biotecnologias em benefício humano. Nenhum avanço científico justifica o sofrimento desnecessário, e critérios claros de necessidade e proporcionalidade devem ser respeitados.
Se nos parece que a utilização dos animais é lícita, é interessante nos atermos aos riscos de fazê-lo. Uma área de incertezas e de complexa avaliação de riscos é a potencial transmissão de infecções originadas dos xenotransplantes por agentes patogênicos conhecidos ou não, que podem não ser danosos ao animal, mas possivelmente perigosos ao homem. Os piores cenários podem incluir a disseminação dessas zoonoses para toda a população. Há quem pondere que este é o mais importante (senão o único) desafio ético aos xenotransplantes. Dessa maneira, é eticamente imperativo que essa evolução seja feita em pequenos passos e com maior cuidado.
Os recentes relatos de xenotransplantes ou foram realizados em pacientes com a morte encefálica já confirmada, ou em casos que chamamos de ‘compaixão’. Os primeiros naqueles já mortos, mas que os médicos recebem autorização para implante do órgão, permitindo seu estudo durante os dias restantes de funcionamento do organismo até a morte circulatória. O segundo, são casos únicos, envolvendo pacientes sem outras opções terapêuticas ou com comorbidades graves. Apesar de contribuírem para as primeiras impressões, poucas conclusões efetivas poderão ser tiradas fora de ensaios clínicos randomizados que incluam um maior número de pacientes. Quando esse momento chegar, será necessária uma cuidadosa seleção de pacientes, com critérios bem claros e definidos, além de permitir seu monitoramento próximo e constante. É importante destacar a necessidade de concordância quanto à não permissão de procriação, devido à possibilidade de recombinação genética que pode afetar as células germinativas do paciente.
Reflexões sobre a transgenia – a modificação genética dos animais para xenotransplante – abrangem uma série de temas de consequências econômicas, como impactos no financiamento público de saúde e no patenteamento de seres vivos. Isso porque porcos geneticamente modificados serão criados por empresas de biotecnologia, potencialmente tornando-se proprietárias de seus órgãos. A efetividade e baixo custo do CRISPR têm permitido o avanço de pesquisas, por vezes realizadas em ambientes metodológicos e éticos que nem sempre são os melhores. Portanto, os riscos previamente mencionados podem não ser uniformemente prevenidos ao redor do planeta.
Não nos esqueçamos de que as disparidades genéticas entre suínos e primatas são resultado de aproximadamente 90 milhões de anos de evolução divergente, o que afeta importantes interações proteicas e bioquímicas, exigindo obviamente cautela. Talvez a medicina precise interagir com as instituições da agricultura, que estão envolvidas com alimentos transgênicos em âmbitos nacionais e transnacionais.
Tanto a Organização Mundial da Saúde quanto a Associação Internacional de Xenotransplantes possuem sugestões para a regulação das atividades de xenotransplantes. Essa discussão precisa avançar em nosso país. Possuímos o maior sistema público de alotransplantes do mundo, e não podemos ignorar que os avanços nos xenotransplantes podem impulsionar também a evolução tecnológica dos alotransplantes. No entanto, é crucial estabelecer uma regulamentação clara para os xenotransplantes, fornecendo diretrizes operacionais, padrões éticos e mecanismos para sancionar desvios éticos de pesquisadores e empresas de bioengenharia.
Norman Shumway, importante desenvolvedor do transplante cardíaco alogênico nos anos 60, tinha costume de dizer: ‘Xenotransplante é o futuro, e sempre será!’. Talvez nem o pessimismo desastroso de Shumway, tampouco um otimismo exagerado, sejam estratégias adequadas para enfrentar essa situação de incertezas. Mas precisamos nos preparar para essa realidade.