Ele não sabia se podia chamar aquilo de trabalho. Já era saber comum que, ao alcançar algo que aguça a mente e apraza a alma, o indivíduo deixa de trabalhar e passa a usufruir.
Ali, naquela taverna, a questão do espaço-tempo era uma coisa curiosa, por vezes confusa. Ocasionalmente ainda precisava lembrar-se de que, naquela brecha, as coisas não eram lineares, subvertiam o fio da vida — daí a desorientação. E, ainda assim, os benefícios daquele ofício improvável — escutar, aprender e servir luminares — superavam em muito os compromissos prosaicos: coordenar os estoques, rastrear origens de bebidas, distribuir tarefas, supervisionar a cozinha.
Essa história é ambientada na Taverna Line of Life, cuja história começou aqui…
Vestir o avental de bezerro curtido era aceitar um enigma do tempo próprio da Taverna: ele não sabia se aquilo já acontecera, se estava acontecendo ou se ainda aconteceria. Só sabia que Ricardo — o garçom — era o responsável. O convite para assumir a função não soara como pedido, e sim como ordem.
— O que achou desse vinho de hoje, professor? — disse ele ao senhor aconchegado ao balcão de mogno, elegante, bem postado, com semblante de quem sente o tempo lhe escorrer pelas mãos.
O mestre terminou de mastigar um pedaço do queijo Morro Azul de Pomerode. A cremosidade do queijo se desfazendo no paladar é seguida do trago do vinho:
— Essa secura está perfeita. Esse vinho branco combina de forma instintiva com o queijo. Não sei por quê, mas desperta em mim uma memória involuntária... um perfeito momento proustiano.
O gerente sorriu, satisfeito:
- Caro mestre, confesso que procurei lhe despertar, à la madeleine de Proust, essa sensação. O vinho vem do norte de Lisboa, do concelho de Loures — um Charneco.
— Inacreditável, Fábio... — murmurou o professor. Fechou os olhos por um instante, como quem revisita a infância em Lisboa: dias em que a relatividade do tempo era palpável, o brincar era infinito, o tempo parecia suspenso. — Assim como Peter Thump bebia esse vinho branco, seco e ácido antes de enfrentar a morte, eu bebo o mesmo aqui, encarando a indesejada das gentes...
À mesa principal, seis senhores conversavam e apreciavam seus jantares de maneira ininterrupta. Intercalavam momentos mais soturnos, com Camus e Nietzsche e outros mais exaltados. Esses últimos protagonizados por Sagan, não sei se porque o mais jovem dentre eles. A ternura de Einstein para Lemaitre era evidente, mas nada superava a reverência de todos, absolutamente regojizados pela presença de Galileu.
Aquela altura, com refeições já concluídas, as preocupações do balcão eram menores; a cozinha preparava apenas as sobremesas. Quanto às bebidas, o uso da relatividade espaço-temporal para obter as melhores safras havia sido ensinado — e absorvido com disciplina — pelo gerente anterior.
Anexo ao salão principal, uma porta dupla, cor branca, com pintura impecável, maçanetas prateadas e caixilhos que desenham uma grade delicada que lembra as janelas de antigas estufas francesas, dava passagem à aconchegante biblioteca, com suas prateleiras abarrotadas de livros de diferentes séculos. Seu acervo já causara espanto até em papas e curadores da Biblioteca do Vaticano que por ali já haviam passado.
Subitamente a porta se abriu. Um menino de cerca de sete anos entrou correndo. Magro, esguio, cabelo castanho-claro, sorriso largo, embora com expressão de dúvida. Carregava um livro um pouco mais grosso que os típicos para sua idade, marcado por uma fita de cetim vermelho.
— Papaaai! Daddys! — chamou, naquele volume que para crianças é fala; para adultos, grito.
— Diga, meu querido, venha cá — respondeu o gerente. Pegou a criança e a sentou no balcão, próximo ao mestre, que sorveu mais um gole e comentou:
— Caro Fábio, não conhecia esse neófito.
— É o Bento. Diga boa noite, meu filho. Este é um dos mestres do papai.
O menino sorriu com deferência:
— Boa noite!
Mas logo se virou ao pai, abrindo o livro: uma edição ilustrada de o Mágico de Oz, de L. Frank Baum.
— Pai, olha aqui! Dorothy, o Totó, o Leão, o Homem de Lata e o Espantalho estão indo para a Cidade das Esmeraldas. Eles encontram um buracão e não conseguem continuar a viagem. O espantalho tem uma ideia: pede para o Homem de Lata cortar uma árvore pra virar ponte.
— Sim, filho... e o que te chamou a atenção?
— Como o Espantalho pode ter uma ideia se ele não tem cérebro?
O gerente reagiu com o brilho orgulhoso de um pai que testemunha um salto neurológico do filho. O mestre devolveu um sorriso de canto de boca em um “cara...” — aquele mesmo, usado quando algo o atingia de verdade.
— Bem meu filho... O Espantalho acha que não tem cérebro. Mas ele é inteligente — só não sabe disso. O cérebro está lá, esperando ele acreditar.
— Lembra quando você dizia que nunca ia conseguir andar de bicicleta? A gente tentou, tentou... e de repente você conseguiu. Já estava lá no fundo; faltava descobrir.
Bento abriu um sorriso de perfeita realização, fechou o livro, pulou do balcão:
— Vou lá fora jogar bola!
Saiu correndo, com seu uniforme alvinegro adornado por uma solitária estrela, fechando a porta francesa com o cuidado alegre de uma criança empolgada.
— Que silogismo perfeito, hein, Fábio? Tens feito um bom trabalho — disse o professor.
— Por que achas isso? — perguntou o gerente, servindo mais vinho.
— Isso é demonstração de pensamento lógico em formação. Piaget chamaria de estágio das operações concretas. Não é ao acaso. Ele está começando a ler de forma autônoma. Os pais devem estar estimulando isso.
— Tens razão. Eu e minha esposa, Cassia — sua ex-aluna — fazemos questão da leitura noturna com todas as crianças. O hábito faz o monge.
— Exato. Essa capacidade de detectar contradições é típica da fase. Mas, mais importante: é fruto de concentração e memória. Ela está moldando suas lembranças, as melhores, mais doces e que resistem ao tempo como um bom vinho. É através da leitura que aprendemos a pensar. Aqui não há outro caminho de salvação. Apenas folheando páginas e mergulhando em pensamentos é que conseguimos preparar nossas lembranças, dar-lhes organização e consistência, bater um papo criativo e construtivo consigo, contigo, convosco.
— Olhe o paralelo, mestre... — disse Fábio, apontando discretamente para a mesa dos luminares. — Einstein, Galileu, Sagan: todos questionadores por excelência. Bento fez o mesmo. Não porque é gênio, mas porque é criança. Crianças não aceitam regras do autor. Acreditam que sua mente deve perguntar. Buscam a verdade por trás da aparência. Testam hipóteses da narrativa. São cientistas!
— Justamente — disse o mestre, saboreando a mesma alegria que sentia quando um aluno, numa discussão clínica, enxergava algo essencial. Um adulto já aceitaria aquilo como fantasia ou metáfora, e seguiria adiante. A criança não. Ela ainda não tem filtros que anestesiam o pensamento.
— A lógica infantil é lógica antes de ser autoconsciente — disse o gerente.
— Exato. Ele detectou um padrão, localizou a falha, verbalizou a quebra da lógica, e veio exigir o reparo. Isso é método, é Descartes na veia. Foi ele quem deu vida à descrição do método. Ao questionar tudo, ele deu vida à incerteza metódica, o trampolim que o levaria à certeza sistemática.
— As crianças ainda não aprenderam a tolerar incoerências. O adulto tende a silenciar, esperando submissão. Mas a função dos pais é estimular o questionamento — disse o gerente, com convicção tranquila.
O professor provou outro pedaço de queijo, agora coberto por geléia artesanal de frutas vermelhas da Serra Catarinense.
— Daí minha congratulação, Fábio — elucidou o mestre, saboreando o contraste do ácido-doce do queijo com a geléia. — A detecção da incoerência é um marco do estágio operatório concreto. A questão não é se o que vimos é normal ou especial. A questão é: vocês manterão a chama acesa?
Fábio fez um breve silêncio; diante do mestre, sentia sempre aquele leve desnível cognitivo, não como peso, mas como admiração.
— A leitura compartilhada treina cognição de alta complexidade. Cria um vínculo, ritual, previsibilidade. Treina a escuta ativa e interpretação. Ensina a pensar durante a leitura, não depois. É nossa responsabilidade não apagar isso.
— Exato, primeiro vêm dados e coesão. Depois vem a experiência de vida. Eis que surge o Dom Quixote, sim, o ícone literário, o cavaleiro errante, representando a literatura, mas agora sugerindo que a lógica e a fantasia devem ser companheiras de dança. Quando a lógica dança de mãos dadas com a fantasia, enxergamos uma versão mais rica e colorida do mundo ao nosso redor.
— E assim, mais uma vez, voltamos à literatura e à experiência — disse Fábio, com familiaridade.
— Evidência mais vivência: binômio inseparável. Dessa forma, damos um jeito de fugir da enfermidade do raciocínio excessivo, que se esgota somente na lógica, que não abarca toda a realidade. Einstein transformou as bases clássicas da ciência, ao inovar com o método hipotético-dedutivo. Gênio! A partir dele as suposições não precisam surgir apenas do que se vê, mas também do que a mente concebe. Evidência e vidência — isso é sabedoria.
De forma sincronizada, mestre e aluno voltaram seus rostos para os luminares à mesa central. Agora compreendiam melhor: ali estavam crianças que nunca foram suprimidas, temperadas pela experiência — espantalhos de Oz que desenvolveram os seus cérebros, Dom Quixotes que usaram a imaginação para iluminar a razão, e com isso, mudaram a humanidade.
Após esse momento de assimilação, ambos voltaram sua atenção aos seus afazeres primários — um, terminar de enxugar os copos; outro, saborear o seu petisco — quando foram surpreendidos por um som agudo, como o de uma taça sendo derrubada à mesa. De relance, perceberam que, à mesa central, um dos luminares parecia semiconsciente, desfalecido sobre a mesa....
Comentários do autor.
- Charneco é o nome pelo qual o vinho branco de Bucelas, proveniente do norte de Lisboa, concelho (municipalidade) de Loures, é conhecido. É considerada a região mais antiga de produção de vinhos brancos de qualidade em Portugal com reputação internacional. Foi um dos vinhos brancos favoritos da corte inglesa no século XIX.
- Aqui há uma referência direta à madeleine de Proust em Em Busca do Tempo Perdido (1913). Na obra o narrador molha uma madeleine no chá e, ao prová-la, é subitamente transportado às lembranças da infância em Combray. O sabor dispara uma lembrança vívida e inesperada do passado (momento proustiano)
- Na peça Henrique VI – Parte 2 (1594), de Shakespeare, o “Charneco” é mencionado, durante o julgamento de Peter Thump. Esse aprendiz se embebeda com Charneco para perder o medo antes de um duelo, onde enfrentará a morte.
- L. Frank Baum (1856-1919) teve diversos empregos antes de se tornar escritor; gerenciou um mercado e criou galinhas — assim como o gerente na Taverna. Mas tinha o dom de escrever e contar histórias — coincidência não compartilhada pelo gerente. O Mágico de Oz foi um sucesso imediato e sua maior obra.
- Piaget formulou a principal teoria sobre o desenvolvimento cognitivo, esse que inclui a percepção, memória, discernimento e raciocínio. Reli o capítulo do desenvolvimento e comportamento do clássico Nelson – Princípios de Pediatria.
- O mestre, professor recostado no balcão da Taverna Line of Life não teve sua identidade revelada, pois aquele que o colocou ali — o garçom Ricardo — ainda não o fez. Dessa maneira, permanece com sua identidade obscurecida. Seus diálogos e textos serviram com inspiração para suas falas.





