Sabedoria está em todo lugar/ Embora o mar tempestuoso não a possua,/ E a imensa e profunda resposta/ Não esteja em mim.
Nietzsche ergueu-se de súbito após o garçom recitar os versos de Oscar Wilde.
Não foi um gesto brusco, mas uma mudança de eixo — como se a Taverna ganhasse um novo centro de gravidade. A mesa, as taças e a luz ajustaram-se em torno dele, obedecendo a uma ordem inaudível.
Essa história começou em…
Ergueu a colher de sopa em ameaça culinária, suspensa no ar como um pequeno cetro.
— O poeta que me perdoe — disse, o sorriso roçando a insolência — mas o indivíduo é, sim, de cima a baixo, uma parcela do destino. A profunda resposta está somente nele, não no céu. Não há redenção por negação do mundo.
Com um gesto brusco, a colher pousou no prato, tilintando como um martelo de sentença.
A fisiologia de um corpo com saúde visivelmente debilitada que parecia não suportar a própria filosofia. Uma guerra silenciosa tristemente evidente aos demais à mesa. E Nietzsche a estava perdendo.
— A moral cristã é uma moral condenatória. Vejam o pomposo julgamento de Galileu: uma idiossincrasia de juízes degenerados, pregada como virtude. — as palavras articulavam-se precisas e acusatórias. — A doente razão do sacerdote é: “Faça aquilo, faça isso... e assim será feliz. Caso contrário...” — cortou o ar com a mão, como quem decepa uma esperança. — Esse imperativo, esse “senão” é o grande pecado original da razão domesticada.
O garçom passou discretamente entre eles, recolhendo um guardanapo inexistente. O breve gesto abriu um milímetro de silêncio — suficiente para o ar mudar de densidade.
O filósofo parecia estar em um púlpito. O brilho da lareira faiscou em seus olhos, incendiando a própria ideia que irrompia. Ergueu a voz, clara:
— A virtude é o efeito da felicidade deste ser. É a consequência. — prosseguiu, voltando-se a sentar ruidosamente — O bom é leve. Necessário. Instintivo. Não há o senão ameaçador. Não carrega o fantasma da culpa, que persegue a humanidade como um eco interminável.
Tocou os dois dedos na própria têmpora, como se ali localizasse o ponto exato do fenômeno.
— A razão lúcida — não condenatória, livre — diria: sendo feliz, você agirá instintivamente com virtude.
O garçom aproximou-se um pouco, como se saboreasse mais aquela discussão com um Nietzsche quase combativo, e arriscou:
— E ao contrário, os erros e os vícios são consequências…
Nietzsche completou, os olhos em brasa:
— Da degeneração do instinto. Da degradação da vontade. Ao invés de o vício levar um povo à ruína, é o povo que se degenera e, então, segue-se o vício. Há uma necessidade de estímulos cada vez maiores, como em toda natureza de esgotamento decadente.
— Um momento, Nietzsche. — disse Lemaître, erguendo discretamente a mão. — Há um contraponto necessário às suas palavras — diria até ferozes — sobre os cristãos.
A interrupção caiu como uma linha traçada no chão.
Nietzsche sorriu com ironia medida.
— Pois não, padre? Ora, Ora, ...minha crítica à autoridade moral da religião cristã incomoda-o pela sua batina?
— Não pela batina — respondeu Lemaître com serenidade —, mas por sua generalização.
Nietzsche inclinou-se para a frente, os olhos inquisidores:
— Todos os sacerdotes se tornam perigosos apenas quando amam. Pois ninguém os iguala nesse tipo de amor: adoram de uma forma perigosa, mortal.
Endireitou-se:
— Diria até que o senhor está surpreso com isso.
A mesa fez um pequeno ruído: talheres tocando porcelana. Seriam os talheres a produzir o som ritmado que o sacerdote ouvia?...Lemaître pousou as mãos sobre a mesa, dedos juntos, como se se contivesse. Manteve o silêncio, atento.
— Veja — continuou Nietzsche, gesticulando como quem dissipa uma fumaça —, você carrega em si a mesma ilusão que tantos filósofos carregam: a de situar-se além do bem e do mal… quando, na verdade, não existem fatos morais. O julgamento moral — assim como o religioso — nasce da ignorância que impede o homem de distinguir o real do imaginário.
Lemaître respirou fundo e sorriu discretamente.
— Eu a carrego…? Explique-me, então. O que chama de “moral”, Nietzsche?
O filósofo abriu um sorriso que era quase um corte.
— Chamam de moral essa obsessão por “melhorar o homem”, torná-lo virtuoso. Eu, porém, digo: querem amansá-lo! Domesticá-lo como se domestica um animal.
Um silêncio curto, quase inexistente.
— O sacerdote, como você, meu caro — esse suposto “melhorador” — nada sabe. Ele acredita que tornar o homem mais fraco, menos feroz, é um avanço. Que a disciplina do medo, da culpa, da fome espiritual é uma forma de elevação.
Lemaître apenas arqueou uma sobrancelha.
— Eu nada sei…?
Havia no ar a expectativa de que o padre fosse subjugado.
Nietzsche ergueu o dedo, enfático:
— O resultado é sempre o mesmo: o homem enjaulado, doente, miserável. Aprisionado física e moralmente como Galileu! O homem domesticado é o quê? O “homem pecador”. As grades são os mandamentos que o constrangem, que o afastam de seus instintos mais profundos.
Nietzsche recostou-se, triunfante.
— Eis o que digo, padre.
Lemaître deixou que o silêncio se acomodasse entre eles por alguns instantes. O estalar das brasas na lareira — o último som vivo da taverna quase vazia — parecia marcar o compasso de sua reflexão.
— Nietzsche, — começou o sacerdote, com a voz fria e seca como o vinho— reconheço sua crítica à domesticação moral. De fato, qualquer sistema que pretenda reduzir o ser humano à obediência cega merece suspeita. Deixe-me responder com algo que, segundo imagino, o irritará profundamente.
O aroma distante do vinho , esquecido em alguma mesa, ainda pairava no ar como um fantasma discreto.
Lemaître inclinou-se e citou, sem elevar a voz:
— Deus não nos deu espírito de covardia, mas de poder, amor e moderação.
Nietzsche estreitou os olhos.
— Repare — continuou Lemaître. Poder. Amor. Moderação. Nenhum desses elementos constitui domesticação. Poder não é fraqueza; amor não é servidão; e moderação não é castração dos instintos, mas sua canalização para algo mais elevado. A fé cristã não deseja um homem menor. Deseja um homem inteiro.
A madeira da taverna rangeu com uma rajada de vento de inverno lá fora, como se o próprio edifício reagisse ao impacto das palavras. O sacerdote ajeitou os óculos com um movimento mínimo e manteve o ritmo:
—Exige apenas que sejamos humanos… plenamente humanos, com tudo o que isso implica: fraqueza, coragem, contradição, transcendência.
Lemaître levantou o copo, e a luz do fogo refletiu na superfície do vinho. Olhou curioso para os lados...estaria ouvindo sons periódicos de martelo…? Retirou os óculos para desembaçá-los e continuou:
— Não domesticamos ninguém, Nietzsche. Convidamos. E quem aceita, descobre que a força não nasce do instinto, mas da lucidez da consciência.
Ele respirou, e por um momento a taverna pareceu crescer em silêncio ao redor deles.
— Eis o meu contraponto, meu caro.
Nietzsche sorriu; não derrotado, mas reconhecido no campo que Lemaître escolhera. A disputa mudara de tom — de confronto retórico para cálculo cirúrgico. Inclinou-se para a frente, como um predador prestes a atacar o argumento exposto.
— Então, Lemaître, explique-me… o que é, para vocês, esse tal “homem inteiro”? — perguntou, a voz carregada de escárnio polido. — Pelo que vejo, é apenas aquele responsável, como gostam de dizer. Responsável, sim — mas não por liberdade: responsável porque vocês o tornam dependente, para então julgá-lo e puni-lo.
Ele ergueu um dedo, como se assinasse uma sentença invisível.
— Você sabe disso. E há de concordar: o cristianismo é, antes de tudo, uma metafísica do carrasco. Vocês inundaram o mundo com três conceitos que o envenenaram. A culpa. O castigo. O medo.
As brasas da taverna crepitavam no silêncio tenso, projetando sombras que oscilavam no rosto do filósofo. Lemaître abriu a boca para responder, mas Nietzche ergeu a mão, não para calá-lo — mas para sublinhar.
— E não bastou isso — continuou Nietzsche, implacável. — Inventaram ainda o conceito de finalidade, como se houvesse um propósito maior a orientar o homem. Mas tal coisa não existe. A finalidade é um truque — uma armadilha teológica. Serve para quê? Para punir. Para medir o homem por um ideal irrealizável. Chamá-lo de pecador quando fracassa. Para impor um padrão artificial de felicidade, de moralidade, de “plenitude”.
Silêncio.
Som de copo pousando no balcão ao fundo — o garçom novamente.
Nietzsche riu, um riso breve, quase triste.
— Um absurdo, padre. Um absurdo querer empurrar o homem para uma finalidade que não existe.
A taverna parecia escurecer por um instante, como se as próprias paredes absorvessem o peso das palavras.
— A verdadeira libertação — prosseguiu o filósofo — viria do reconhecimento de que não existe causa primeira. Não há um plano, uma vontade divina, um sentido secreto. Sinto muito, caros amigos, mas não há uma ordem superior— e o disse abrindo os braços e dirigindo-se a todos à mesa —Aceitar isso seria redimir o homem. Seria devolver-lhe a inocência original: a inocência do vir-a-ser, do fluxo do real, sem culpa, sem pecado, sem vigia celestial.
As brasas da lareira estalaram, como se aprovassem a geometria final da frase.
Ele encarou Lemaître com uma intensidade quase luminosa. Este, por um instante, parecia distraído, observando os arredores, como se quisesse escutar algo além.
— Mas vocês… vocês inventaram Deus. E o conceito de Deus foi a maior objeção já levantada contra a existência. O maior impedimento para que o homem afirmasse a si mesmo. Por isso o negamos. Não por ódio, mas por lucidez.
Nietzsche cruzou os braços e concluiu:
— Somente negando a responsabilidade em Deus posso, enfim, redimir o mundo.
Camus uniu os cotovelos à mesa e ajeitou o guardanapo como quem preparo o palco. A chama projetou sombras sobre seu rosto, acentuando seus traços severos, criando uma arquitetura de luz e dúvida.
— Inicialmente, e por muito tempo — confessou — também acreditei que a rebelião do indivíduo contra a ausência de sentido bastava. Criava até dignidade, solidariedade. E rejeito, como você, Nietzsche, a opressão da moral condenatória, que condena antes mesmo de compreender.
Ele fez uma pausa — ou talvez o peso da própria consciência a tenha imposto. O garçom passou discretamente ao redor da mesa, recolhendo um cálice vazio, e o som do vidro tocando a bandeja de prata marcou uma pausa natural no discurso.
— Mas percebi que quando a rebelião ultrapassa seus limites, nossa necessidade de criar reinos e buscar salvação se torna o caminho para a catástrofe. — Camus levou as mãos à nuca.
— Na fuga do absurdo da vida — continuou —, o ser humano é tentado a uma transformação total da sociedade. A rebelião então se torna tirania.
Camus corrigiu um vinco no guardanapo, como quem seleciona um pensamento.
— E, especialmente segundo os marxistas, isso se dá necessariamente pela abominável violência. E quanto ao uso da violência, já conhecem minha opinião. A ânsia humana por salvar o mundo fabrica monstros. Prometem paraísos e entregam violência.
O garçom aproximou-se cautelosamente, medindo as palavras.
— Se o excesso de culpa Nietzsche imputa ao cristianismo, o excesso de ordem cria totalitarismo. Já confiança em demasia é possível... na ciência. O homem tropeça mais no excesso do que na falta. Se realmente ninguém quer ser tirano, por que todos impõem algo a alguém?
Einstein deixou de lado o cachimbo:
— Ao menos de falta e mediocridade não sofreremos...— e sorriu.
Sagan inclinou-se, atento, como se quisesse capturar cada nuance das palavras:
— Talvez Camus possa nos esclarecer. Você reconhece que sua época criou uma recusa catastrófica do próprio mundo, da realidade crua?
Camus respirou fundo. Uniu as pontas do guardanapo de linho. A resposta veio densa, como um desabafo contido há anos.
— Uma vez que a religião tradicional perde força, vivemos a situação de sensação de um vazio existencial. Ao perder a religião, o vazio que resta é vasto demais. Tudo se torna possível — e sem limites. — Falo contra absolutos… mas sou obrigado a defender valores mínimos. Minha ética é esse paradoxo ambulante.
Nietzsche bateu a colher — seu pequeno cetro — na mesa, satisfeito como quem encontra eco onde menos espera.
— Para quê um além, um paraíso nos céus ou um novo mundo, se não fosse para degenerar o aquém? — parecia ditar as palavras, saboreando-as — O cristão culpa o infortúnio a ele mesmo, ao homem pecador; o socialista, os outros, nunca a si mesmo. Ambos buscam culpados. Sempre há a indigna culpa por se sofrer. Ambos carregam a chaga da culpa. E o remédio?
Fechou os olhos por um instante, como se lhe fosse revelada a verdade absoluta, amarga:
— A doce vingança pelo sofrimento.
Trovões soavam à distância ou era apenas mera impressão de Lemaître?
Nietszche prosseguiu, arregalando os olhos:
— Tanto o cristão quanto o anarquista e o socialista são decadentes. — disse entredentes — O cristão denigre, condena o mundo e a si mesmo. O socialista denigre e condena a sociedade. Ambos com o mesmo ímpeto vingativo. O mundo degenera porque o homem degenera.
Sagan até então silencioso, inclinou a cabeça, pensativo.
— Então, na revolta contra a dor, contra a iniquidade da vida, criamos nossa própria justiça que procuramos sem sucesso na existência?
O garçom voltou a afastar-se, e Camus acompanhou sua trajetória com o olhar, só por um segundo. Depois, assentiu devagar.
— Sim. É no ser humano, e apenas nele, que repousa a responsabilidade pelos próprios atos. Nada de sobrenatural. Nenhum todo-poderoso. Nenhum tutor cósmico, para usar uma palavra que você aprecia, Sagan. — disse sorrindo, ao apontar para o cientista. — E justifica-se, assim, a queda do Reino de Deus.
Ergueu um pouco a cabeça. Escorregou do seu colo o linho branco, e desapareceu sob a mesa.
— Esta queda é o peso do homem — e sua libertação. — e Camus tocou com a mão espalmada na mesa.
Galileu, que dedilhava a borda da mesa como quem busca sons para ordenar os pensamentos, ergueu o rosto para o vazio luminoso do teto. Os dedos avançavam em pequenos arcos, tateando o relevo da toalha bordada, buscando ali uma geometria íntima.
— Se o que vocês dizem é a mais pura verdade...— murmurou — antevejo séculos de luta e conflito. Mas percebo em vocês e parece-me que, na inconcebível falta de credo, o ser humano segue ávido pela busca do sentido e inevitavelmente criará outra igreja. Ou outro deus, ou outro credo para substituí-la. Na verdade, um falso deus.
Levou as mãos ao rosto enrugado, apenas para afastar o cansaço, não para dramatizá-lo.
— A mente humana não suporta o vácuo. A cegueira é minha… mas vejo que vocês também tateiam no escuro.
Seguiu-se um silêncio breve.
Nietszche redarguiu com a maior delicadeza possível para um iconoclasta:
— Meus caros, o cristianismo como uma moral que inventa culpa, fabrica castigo, cria pecado!... — e cada palavra que saia da boca do filósofo parecia atingir o âmago de Lemaître como um martelo.
Uma sensação de vertigem dominou o sacerdote, lenta e gradualmente, anestesiando-lhe os dedos. O filósofo continuou implacável, uma fogueira que consome tudo:
— Um Deus para domesticar o homem, torná-lo dócil e manipulável.— disse, com firmeza de uma sentença — Precisa direcionar a agressividade e paixão natural em auto-punição, um mecanismo decadente e doentio.
Nietzche prosseguiu, agora mais rápido:
— Vocês religiosos se baseiam no princípio de existir uma finalidade, que fomos criados para uma missão.
Lemaître lutou contra um sensação angustiante que apossava-se da sua mente e de seu corpo. Uma palpitação fazia-o tremer e apertar-lhe a garganta. Uma ideia começou a se formar, uma ideia louca, indizível...seria possível?…
A mesa permaneceu imóvel. Apenas o garçom, ao fundo, recolheu um guardanapo esquecido. O gesto breve abriu um curto intervalo.
Nietszche estava em êxtase:
— Somente existe o estado de mudança, do vir-a-ser, do fluxo. Não fomos criados, muito menos para algum objetivo místico transcende.
Retomou com a voz mais profunda, mais cortante:
— Dito isto, afirmo a nossa existência, somente ela, completamente ela. Com isto, vos liberto! Livro-vos da culpa e do jugo moral! — e esmurrou triunfante a mesa. O silêncio instalou-se como lâmina.
Um breve deslocar da cadeira, quase inaudível, funcionou como pavio deflagrado antes da explosão final.
A mente do padre começou a afastar-se da Taverna como quem é puxado para o interior do próprio pensamento. Tudo ficou mais silencioso, depois mais profundo. O ranger da mesa se dissolveu, mas permaneceu aquele ruído persistente desde o início: um martelo. Ritmado. Sem pressa. Como se alguém estivesse fixando o mundo inteiro de volta no lugar.
O garçom passou diante dele com um copo de água em movimentos entrecortados, como se passasse por espelhos. O gesto foi leve, e a luz refletiu no vidro. Abriu-se um corte branco na sua visão, e por um instante, um clarão que deslocou a imagem.
Então, tudo se afastou.
O teto da Taverna já não mais existia, em um espaço cada vez mais vasto e menos humano. A madeira das paredes perdeu textura. As mesas perderam peso. O mundo parecia recolher-se aos poucos, como um cenário que não suporta a própria existência.
O martelo… continuava. Cada batida mais próxima. Mais grave. Como se estivesse fixando algo que não se podia ver.
Lemaître tentou falar, mas a voz não encontrou onde reverberar.
O som das batidas vinha de cima.
Agora, percebia com mais clareza, estava em um monte. Um ritual de execução por tortura se descortinava à sua frente.
Olhou para o alto e viu fincada a cruz de madeira… presenciou cada som, cada batida do martelo de um carrasco romano pregando fundo, cada vez mais fundo na carne frouxa e frágil da mão do condenado…
O ritmo do martelo na mesma cadência do seu peito palpitante.
Culpa…mais uma impacto…
Castigo…ferindo a carne...
Pecado...as marteladas soavam agora como trovões, ensurdecedores.
O prego finalmente estilhaçou os ossos até a madeira.
O martelo cessou.
Silêncio.
Uma gota de sangue sacrossanto na lama aos seus pés, ao lado da cruz de madeira. A mesma lama com sangue das trincheiras na guerra. Contraiu o abdome, nauseado.
O ambiente girava. Percebeu o céu tempestuoso, nuvens colossais escuras e ameaçadoras em círculo acima da cabeça coroada e ensanguentada do homem em agonia.
Ele olhou diretamente para Lemaître abaixo, o olhar infinitamente piedoso envolvendo-o como um manto quente. Pôde ouví-lo sussurrar enquanto arquejava... “Deus meu, Deus meu, porque me desamparaste?”
Então, percebeu o garçom de pé ao seu lado, sempre presente, o olhar misericordioso, e entendeu o impossível, o impensável,… ele sabia, ele poderia saber toda a verdade?… e tudo se tornou a mais densa escuridão.





