À beira da morte
as correntes que nos aprisionam são rompidas.
Durante breves momentos
somos o entendimento perpétuo.
Prestes a despencar
nas brumas do esquecimento, vislumbramos o horizonte infinito, distante.
No término do rio da vida,
águas em torrente implacável.
Antes da queda sofrida,
não há mais tempo,
não há mais consciência,
apenas conhecimento absoluto.
Tragados pelo fluxo contínuo e inexorável,
resoluto efluxo do passado, instantes antes da indistinta névoa,
levantada pelas águas da existência,
a percepção de que não há fechamento,
apenas convergência inevitável,
de todos os instantes —
vividos e não vividos —
tudo o que foi e o que poderia ter sido,
tudo o que presenciamos e sonhamos, quem amamos e poderíamos ter amado.
O Ser agora dissipado e dissolvido em águas calmas e seguras da completa
humanidade.
R.T.Schulz Confira como essa história começou no link abaixo:
Estava aliviado por não ter encontrado o Anjo Caído em pessoa ao entrar por aquela porta sinistra.
Ao invés disso, Lemaître — padre e astrofísico — esquadrinhou o ambiente com os olhos, desconfiado, como quem procura por pistas de sacrilégios. Mas não encontrou quaisquer sinais suspeitos ou ocultistas.
Poderia perfeitamente estar em um pub no entorno da Grand Place, em Bruxelas, como o famoso e bem frequentado À la Mort Subite. Havia apenas um ambiente comum, embora elegante, com poucas mesas redondas distribuídas pelo pequeno salão e uma mesa de centro, com um belo arranjo. Um outro homem, bem vestido e próximo ao balcão nos fundos, conversava animadamente com o bartender, além dos demais convidados ilustres que lhe foram apresentados. Até crianças ali estavam, aquecendo-se próximas à lareira, no canto. Um ambiente aconchegante, sem dúvida, com iluminação amena e um toque de intimidade entre os presentes.
O educado garçom, com seu avental verde-musgo, aproximou-lhe a cadeira vitoriana para acomodá-lo ao lado de Albert Camus, o famoso escritor francês, e anotou seu pedido. Havia somente mais um lugar não ocupado.
Conhecia-o por meio de seus célebres livros — A Peste e O Mito de Sísifo. Lembrou-se de que o primeiro o impactara profundamente pela forma como retratava a tragédia e as críticas ao papel da religião em situações extremas de morte e destruição, com o memorável personagem Padre Paneloux contrapondo-se à visão pragmática e concreta do médico Dr. Rieux.
À sua frente, sentava-se Friedrich Nietzsche, autor do célebre O Anticristo, entre outros — ou, pelo menos, a figura dele, pois havia sido um filósofo do século… passado. Havia desaparecido em 1900, se não lhe falhava a memória, há mais de quarenta anos! Mas, se seus sentidos não o traíam, lá estava Nietzsche pessoalmente: uma figura lúgubre, de aparência frágil e consumida, que o encarava com um discreto sorriso.
“Como seria possível?” — perguntou-se. “Seria uma ilusão? Um sonho lúcido? Estaria enlouquecendo?”
—“Tu és a Ponte, Lemaître.” As palavras trovejantes ainda ressoavam em sua mente, inquietando-o com um senso de urgência inexplicável. O que aquilo significava? Aliás, percebeu que se tratava de uma poderosa voz feminina…
De fato, conhecia profundamente a obra literária de Camus, a filosofia de Nietzsche e, claro, a física de Einstein, todos ali presentes. Seria mera coincidência?
O homem ao seu lado — que se apresentara como físico, o único que não lhe era familiar em pessoa ou em obra — apontou, tentando não parecer indiscreto:
— Lemaître, vejo que o choque inicial pela situação ainda o afeta de forma mais intensa do que a nós quando chegamos. Seria devido à sua formação teológica?
—Você concorda, Sagan, que é uma situação absolutamente excêntrica, não é mesmo? Não preciso ser padre para ficar admirado ou arrebatado — respondeu Lemaître, posicionando-se em sua cadeira.
Sagan continuou: — Diria assombrado, talvez. Se tentar entender pela sua visão científica, terá mais sucesso do que pela sua visão religiosa, isso eu lhe garanto. Estamos realmente todos aqui — em carne, osso e pensamento — como disse Einstein ao recebê-lo.
— Podemos ser projeções de nossa consciência em um mundo além do material — disse Camus, comprimindo os lábios. — A coisa toda só fica mais complicada quanto mais eu penso sobre ela.
Lemaître assentiu e dirigiu-se a Einstein:
— Caro amigo, obrigado pela observação à minha chegada, mas não corrigi sua teoria da relatividade. Eu apenas dei um passo além. E, como sabemos, podemos enxergar mais longe porque nos apoiamos nos ombros de gigantes.
O garçom indicou que logo traria sua refeição — mexilhões com batatas — para que pudesse acompanhar os demais no debate.
Nietzsche falou com certa ironia, enquanto degustava sua sopa: — Agora que temos entre nós um padre cientista, unindo fé e ciência, as contradições em nossa existência tornam-se menores. Você venera mais seus ídolos religiosos ou as suas hipóteses racionais, meu caro?
— Eu tenho Deus comigo, e com os dons que Ele me concedeu exerço a minha razão para tocar e compreender a superfície de Sua obra. — respondeu o sacerdote. — Mas, para senti-la, preciso de minha fé para me guiar.
O filósofo insistiu:
— Então, temos um caso insólito em que o azeite e a água se misturam, ou seja, razão e fé, ciência e religião.
Deleitando-se em sua sopa, agora morna, mas ainda deliciosa, Nietzsche percebeu que a temperatura do debate estava maior do que a de seu prato.
Camus interveio:
— Parafraseando Pessoa: a ciência descreve as coisas como são, a arte como são sentidas… e a religião como se imagina que são.
Lemaître respondeu calmamente:
— Nem imaginação, tampouco contradição irreconciliável com a razão. A religião é a percepção humana do transcendente, colocada em prática pela fé, algo maior do que todos nós. É a nossa face humana mais próxima do milagre da existência. A fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que não se vêem.
Einstein intercedeu:
— E lhe adianto, caro Camus, que o nosso amigo Lemaître fala com propriedade sobre, digamos, o paradigma ou suposto conflito entre ciência e religião. Pois foi ele, um padre, a mente por trás da elucidação da origem do universo, o qual chamou da hipótese do átomo primordial, não é mesmo, Lemaître?
— Sim, Albert — respondeu Lemaître. — Mas apenas apliquei princípios cosmológicos à sua genial teoria da relatividade e — pigarreou — demonstrei matematicamente que o universo estava em expansão.
—E que contrariei com veemência inicialmente, não foi? — Einstein riu-se. — Como lhe disse, ao me apresentar sua teoria? Ah! Lembro-me: “Georges Lemaître, sua matemática é excelente, mas sua física é abominável”.
—Mas depois você mesmo reconheceu publicamente que sua ideia de um universo estático estava incorreta. E me elogiou, inclusive. Lembra-se do nosso encontro com Hubble na Caltech, em Pasadena, em 1933?
Ao que Einstein confirmou sorrindo.
Sagan indagou, com ar curioso:
— Você teve que se explicar para o Papa, não é mesmo, Lemaître?
— Recusei-me a deixar que o Vaticano usasse minha teoria como prova da criação divina, como bem tentou Sua Santidade o Papa Pio XII. Reafirmei que a minha teoria e a criação são duas realidades distintas sobre o início do universo. Para mim, a ciência e a fé caminham em paralelo, cada uma em seu percurso, sem conflito. Não há como categorizar Deus como um objeto pela razão humana.
O garçom interveio, folheando seu caderno de anotações que, a julgar pelos rabiscos, era mais um livreto de poesias e notas de interesse supreendentemente convenientes do que um menu de pedidos:
— Nas palavras de Pio XII: “Parece que a ciência moderna… foi bem-sucedida em testemunhar o augusto instante do Fiat Lux [faça-se a luz primordial] quando, junto da matéria, explode do nada um mar de luz e radiação…a ciência é bem fundamentada quanto à época em que o mundo surgiu das mãos do Criador. Por isso, a criação ocorreu. Nós dizemos: Portanto, existe um Criador. Portanto, Deus existe.”
Lemaître respondeu:
— Exato. Tive de convencer pessoalmente Sua Santidade a não usar minha teoria como prova científica da existência da Criação divina. Não foi um audiência fácil.
Sagan replicou, após saborear as últimas da sua lagosta:
— Ao que sei, creio que você também afirmou — pelo que recordo — que o cientista cristão tem as mesmas ferramentas que o cientista não cristão, assim como a liberdade de espírito.
Lemaître respondeu, compassivo:
— Justo, meu caro amigo. Não sou melhor nem pior cientista por ser cristão. Apenas creio que não posso reduzir Deus, o Ser Supremo, a uma hipótese científica.
Einstein, com ar tranquilo e algo distante, comentou:
— Parece-me, então, que a sua concepção de Deus é mais profunda que a do próprio Papa!
Todos riram, surpresos com o humor de Einstein, que continuou:
— E devo discordar de você, amigo. Pois, nesse caso, você deve à sua ciência, e não à Religião, tal ferramenta de percepção aprimorada de Deus.
Lemaître se divertiu, e pensou na gentileza e benevolência daquele homem admirável:
— Nunca havia pensado dessa forma, Albert.
Em seu íntimo, Lemaître nunca deixara de secretamente reverenciar aquele homem que estava entre os grandes, no panteão com Euclides, Galileu e Newton. No entanto, ainda conservava sua maneira simples, com uma humildade cultivada pelo assombro diante dos mistérios do universo.
Einstein continuou: — A religião sempre flertou com a possibilidade de “provar” suas crenças — e um dos atalhos, atualmente, é a ciência. Sempre foi uma tentação ao clero. Seria o mesmo que Cristo aceitar a proposta de Satanás e saltar do pináculo do templo para o abismo esperando que os anjos o carregassem.
Camus interveio:
— Quando é conveniente. Porém, quando a ciência aponta um fato inconveniente, a atitude muda. E passam de “provas” para obstáculos, a serem superados ou destruídos.
Sagan seguiu Camus, e manteve firme o tom:
— O progresso da ciência subtrai cada vez mais a função — ou a utilidade — da religião, como se existisse um “Deus das lacunas ou dos hiatos de conhecimento”. Porque o que resta ainda não explicado pela razão, pela ciência, é o que atribuímos à aplicação teológica. Conforme evoluímos cientificamente, essa parte do conhecimento deixa o domínio religioso.
— Quando apontamos uma verdade inconveniente para a religião — prosseguiu Camus — ou tentam nos silenciar pela influência ou pela violência, ou a Igreja tenta adaptar-se às novas evidências. Quando isso não é possível, ou simplesmente não desejável, muitos ainda mantêm uma visão literal, fundamentalista, daquilo que está escrito nos livros sagrados.
Einstein voltou à conversa:
— No entanto, nem sempre os teólogos ou o clero abrem mão facilmente de seu domínio, não é mesmo? Mas isso também ocorre com os cientistas que se apegam às suas hipóteses e teorias. Vejam, eu sou, e sempre fui, um pensador não conformista, um “rebelde” se assim desejar, inclinado a discordar. — e continuou, procurando pelo cachimbo no bolso da calça — Sempre desafiei suposições enraizadas que todos consideram como verdade absoluta. Foi assim que demoli o conceito de espaço-tempo absoluto newtoniano.
E finalizou, acendendo o cachimbo: —Acredito que uma fé ingênua na autoridade é o pior inimigo da verdade. E isso não vale só para a ciência.
Sagan concordou, empolgando-se:
— Mais revolucionária que sua teoria da relatividade restrita e geral, impossível, caro Einstein. E você mesmo reconheceu dessa forma ao descrever o primeiro dos seus quatro artigos seminais: “…trata da radiação e das propriedades de energia da luz, e é muito revolucionário.” Mas acontece que teólogos tentam encaixar as novas evidências ao que está escrito, manipulando ou até distorcendo esses fatos, uma vez que sua visão é estrita, não metafórica, dos escritos milenares.
E concluiu, agitando as mãos:
— Dizem, por exemplo, que a teoria da evolução não é compatível com a criação — mas ambas podem ser partes do mesmo plano!... Sabe-se lá o que isso quer dizer.
Lemaître, pensativo e recostando-se à cadeira, replicou:
— Concordo com você, Sagan, que a Igreja reagiu de formas diversas ao longo dos séculos às ideias científicas que alteravam a visão tradicional, religiosa, do mundo. Não nego a verdade — tampouco me iludo com a concepção de que a Igreja é infalível, assim como nós não somos. A leitura estritamente literal das Escrituras, como bem disse, pode levar sim ao conflito com a realidade científica descoberta.
Fez uma pausa breve, como quem rememora um velho episódio.
— Por exemplo — continuou —, em Josué 10, versículo 13, está escrito: “O sol se deteve.” E isso foi usado contra o heliocentrismo, que chegou a ser formalmente declarado herético e o livro de Copérnico foi banido, “até ser corrigido”.
Sagan abriu um largo sorriso:
— Parece-me, então, que não foi corrigido até os dias atuais!
Einstein também sorriu.
— E pior — disse —, porque até os meus dias a Igreja não reconhece que errou. Por exemplo, ao condenar Galileu, uma personalidade que beneficiou a humanidade por meio da independência de caráter e de discernimento. Insistem no erro por trezentos anos. Acho que já se passou tempo suficiente para meditar e reconhecer, não?
O garçom, apenas observando, lembrou que foi somente em 1992 que o Papa João Paulo II reconheceu oficialmente que a Igreja errou ao condenar Galileu, depois de “revisar o caso”.
Lemaître assentiu:
— Atualmente, meus amigos, existe uma força da nossa parte, do clero, de inclusive apoiar pesquisas científicas. Evoluímos em pensamento assim como a ciência evoluiu. Passamos de condenar e censurar, a agir com cautela e resistência, e finalmente a não oferecer oposição direta.
Ele apoiou o copo na mesa e prosseguiu:
— A encíclica papal Humani Generis, de 1950, por exemplo, definiu limites teológicos em uma época de debate sobre o darwinismo e a evolução. Ela admite essa possibilidade — desde que trate apenas do corpo, não da alma. Sutil, mas histórico.
Lemaître ergueu o dedo, citando:
— “A fé católica nos obriga a sustentar que as almas são criadas imediatamente por Deus —o corpo, a matéria, pode evoluir; a alma, não, pois é uma criação direta, espiritual e individual feita por Deus.”
Sagan replicou:
— Parece-me, então, que a Igreja instrumentaliza a ciência, necessitando confirmá-la ou comprová-la para que possa ser reconhecida como algo válido.
O sacerdote o fitou com serenidade:
— Entendo, Sagan. Concordo com você — como cientista e como clérigo. A religião não deve sobrepujar a ciência no seu campo. E vice-versa. Acredito na capacidade humana de buscar diferentes níveis — camadas, se preferir — para explicar distintos aspectos da realidade, de modo não competitivo e não mutuamente excludente. Como disse antes: em caminhos não convergentes, mas paralelos.
Einstein, coçando a cabeça, murmurou:
— Pensando bem, como Sagan comentou, a maior fonte de conflito é a persistência da leitura literal dos textos religiosos, como se fossem fonte de informação científica. Transportar nossa visão científica moderna para tentar interpretar escritos antigos é, no mínimo, anacrônico.
Fez uma pausa, sorrindo de leve:
— Veja: até grandes cientistas perderam tempo com isso. Newton, por exemplo, buscando mensagens ocultas na Bíblia. Mas nossa visão evoluiu.
Sagan, erguendo as sobrancelhas, ponderou:
—Talvez nem tanto quanto imagina, caro Einstein. Há em meu tempo uma tentativa sub-reptícia de travestir de nomes pomposos e pseudocientíficos certas visões ou explicações absolutamente teológicas, que de científicas nada possuem. O exemplo mais gritante é o chamado design inteligente, que exige a existência de um projetista superior para explicar, sobrenaturalmente, o surgimento de características complexas no universo ou nos seres vivos. Uma nova roupagem do velho criacionismo — apenas com um paletó moderno e uma aparência científica engravatada. E isso é apenas um exemplo entre tantos. Por acaso não estaria esta ideia implícita na encíclica papal que Lemaître citou, a qual vê uma afronta à ideia do Criador o acaso, devendo haver uma finalidade, um propósito na evolução das espécies?
Einstein, pensativo, torcia uma mecha do cabelo entre os dedos:
— Essas pessoas, no entanto, ignoram um conceito fundamental existente na natureza: nela não há supérfluo, nem excesso. Gosto da máxima de Newton — “a natureza se compraz na simplicidade”. Reafirma que ela é a realização das mais simples ideias matemáticas concebíveis.
O garçom anuiu, completando as taças: — Sem dúvida. O princípio da navalha de Ockham: entre múltiplas explicações possíveis para um fenômeno natural, a mais simples, direta e com menos pressupostos é a mais provável de estar correta — e a mais confiável.
Sagan agradeceu e continuou:
— Claro. E junto com a navalha, a lupa das observações empíricas, para validar — ou não — a explicação mais simples. A ciência é incansável em sua busca por validação, provas, evidências…na tentativa de se aproximar da verdade. Gostei desta dupla de ferramentas para a compreensão: a navalha e a lupa!
O garçom, sorrindo, completou:
— O gênio Pessoa assim escreveu certa vez: “a ânsia de compreender, que para tantas almas nobres substitui a de agir, pertence à esfera da sensibilidade. Substituir a Inteligência à energia, quebrar o elo entre a vontade e a emoção, despindo de interesse todos os gestos da vida material, eis o que, conseguido, vale mais que a vida, tão difícil de possuir completa e tão triste de possuir parcial.”
—Belíssimo! Por uma vida completa! —Lemaître ergueu o olhar:
— E da mesma forma que não faz sentido dar uma roupagem científica a questões estritamente teológicas ou ético-morais, tampouco faz sentido instrumentalizar a ciência com dogmas — amputando-lhe a sua essência, o ceticismo. A ciência deve se questionar. Sempre. Sem verdades científicas absolutas.
Sagan interpelou, repousando os talheres:
— E lembre-se, Lemaître, em outras épocas, você não teria tanta sorte com a sua teoria. Talvez acabasse torturado até confessar suas ideias “heréticas” — e depois queimado vivo em praça pública.
O sacerdote respondeu com calma:
— Espero, Sagan, que eu tivesse a mesma coragem se vivesse em outros tempos mais sombrios. Não nego que o ser humano é capaz de fazer o mal com muito mais facilidade do que o bem. Alistei-me e lutei na Primeira Grande Guerra. Tive, nas trincheiras, a graça de Deus por sobreviver aos seus horrores — ao massacre da vida humana, sem sentido algum. — o olhar triste do cientista e sacerdote pareceu se perder em lembranças. —A fome que nos consumia. O frio congelante. A sujeira nauseabunda entre os ratos gordos que se refestelavam com a carne pútrida dos combatentes mortos — alemães e belgas, para sempre meio soterrados na lama, na terra de ninguém.
Ouvi-se o crepitar da lenha na lareira. Lemaître continuou, o horror transparecendo em sua voz trêmula:
—A miséria da selvageria enlouquecia tudo e todos. As doenças apodreciam o corpo; a violência carcomia a alma dos meus amigos soldados — cadáveres ambulantes, muitos sem esperança de voltar para casa e rever suas famílias. A guerra, faminta, devorava tudo.
Lemaître parecia subitamente exausto, sua vitalidade drenada pelas memórias.
—Naqueles dias aterrorizantes do homem bestializado, o homem-animal — o colapso da civilização que eu, ainda jovem, conhecera — a única coisa que me manteve são, que impediu que perdesse minha própria humanidade, foi minha fé em Deus. Lá, nas trincheiras, deixei minha razão em suspenso para sobreviver em minha crença em Cristo. Por Ele e para Ele.
Seguiu-se um silêncio denso, carregado de horror, compaixão e respeito. Os olhos de todos pareciam fitá-lo através do tempo.
O padre continuou: — Há momentos em nossa existência fugaz em que a fé nos salva de nós mesmos. E há outros em que a razão nos guia como uma vela na escuridão. Se podemos possuir ambas, por que não exercê-las?
Camus interveio, com um ar sombrio:
— Também me senti esmagado pela guerra, Lemaître — pelos seus horrores e dilemas morais — quando minha França foi invadida pelos nazistas. Quando vi a morte ceifando próxima, insensata e sem propósito, fui assaltado pela questão: quando, se é que alguma vez, a violência contra os ocupantes nazis era justificada? Temos o direito de matar outro ser humano? Questiono se somos permitidos, pela violência, aumentar a miséria do mundo.
Camus completou, entrelaçando os dedos:
— E digo que foi somente às portas da morte que encontrei razões para lutar.
O garçom, servindo o sacerdote com pratos de mexilhões e batatas, disse em tom quase poético:
— Conhece estes versos de Mário Faustino?
“Não conseguimos firmar o nobre pacto Entre o Cosmos sangrante e a alma pura. Porém, não se dobrou perante o fato Da vitória do caos sobre a vontade. (Tanta violência, mas tanta ternura).”
O silêncio que se seguiu pareceu mais eloquente que qualquer resposta.
Lemaître elogiou, parecendo acordar de um pesadelo:
— Bonitos versos! Parece que, na sua visão, Camus, a religião não oferece esse consolo... que eu senti, não foi? Padre Paneloux, no seu livro A Peste, que o diga…
Camus respondeu, sereno:
— Fico feliz que tenha lido meu livro. Procurei transpor ali minha experiência de vida. Como você disse, Deus não é explicável pela razão. Então, para mim, é inútil esperar salvação de onde não há entendimento — apenas abstrações. Como assumir que o seu Deus seria o mesmo que o de outrem?
Fez uma pausa e prosseguiu: — Ao meu personagem, Paneloux, não restou nada além de sua fé em frangalhos, diante da imagem crua da tragédia humana — a existência do mal. Quando presenciou a agonia daquela criança doente e pustulosa em seu leito, morrendo desamparada, em sofrimento indizível, viu que a religião tradicional de todos os dias não lhe oferecia consolo algum — muito menos respostas para o tempo da peste, o absurdo da condição humana. Lá, Deus silenciou-se diante da morte, assim como nas suas trincheiras, padre.
Sagan interveio, ponderado:
— Não há dúvida de que, em tempos de guerra ou epidemias — ou seja, em situações-limite —, surge a maior necessidade humana de procurar consolo, explicação, respostas.
Fez uma pausa e citou:
— Lembro-me de Dostoiévski: “Se Deus não existisse, tudo seria permitido.”
Voltando-se ao padre, perguntou:
— E você, Lemaître, não se questionou como todo aquele horror estava acontecendo ao seu redor e em você, apesar da sua fé em Deus? Como pôde suportar, diferentemente do personagem de Camus, cuja crença restou em frangalhos?
Lemaître respondeu com voz calma:
— Respondo-lhe com outra frase, do mesmo autor russo: “Quanto mais escura a noite, mais brilhantes as estrelas. Quanto mais profunda a dor, mais perto está de Deus.”
Sagan prosseguiu, ainda curioso:
— Insisto nessa questão, Lemaître, pois como cientista tendo a procurar explicações e entender senão a fé — algo pessoal, íntimo —, mas ao menos a religião, a crença organizada. Não discuto que a ciência busque o como e o porquê físico, causal; a religião, o “porquê último”, como dizem, transcendental. Reconheço a função positiva das religiões, como oferecer padrões éticos, consolo em tempos de luto, senso de continuidade e tradição para coesão social.
Inclinou-se para frente e concluiu, com ironia sutil:
— Mas, desculpe-me pela sinceridade, a verdade ou falsidade de uma doutrina teológica torna-se menos importante do que a estabilidade social que ela mantém. Historicamente, já existiram incontáveis religiões, cultos, crenças no divino. É difícil acreditar que todas as centenas — ou milhares — de religiões desde o início da humanidade estavam erradas... e que apenas agora, há dois milênios, tenhamos encontrado a “verdade”.
Lemaître respondeu, com leve sorriso:
— Eu vejo a religião como uma catedral eterna inacabada, ao modo de Gaudí.
Camus, sem demora, completou:
— E eu a vejo como uma tentativa — como você bem disse, Sagan — do ser humano desesperadamente explicar o absurdo da existência e da condição humana, que sempre foi e sempre será sem sentido. Mas, para mim, é evidente que a fé em Deus não resolve essas mesmas questões. É, talvez, uma negação coletiva.
Inclinou-se, o olhar profundo e melancólico:
— Somente o reconhecimento e a aceitação do absurdo inevitável nos resta. Com isso, estaremos livres. Sim, libertos para enfrentar a morte e celebrar a vida em sua plenitude — sem falsas promessas ou abstrações. Falo da rebelião contra nossa mortalidade, contra a incoerência e a falta de sentido universal. — Camus ergueu o olhar como se em triunfo. —O que nos resta, como bem único? Somente a própria vida! Melhor ainda, nossa consciência dela!
O garçom interrompeu, refletindo:
— Logo, concluímos que a vida é o bem maior. O bem supremo — que não se pode retirar de si nem do outro.
Camus assentiu:
— Exato. Não apenas o bem maior — é o único. Não está antes, nem depois, em algum paraíso ou reencarnação prometida. Está aqui. E agora.
O garçom continuou, pensativo:
— No entanto, é a doutrina da redenção que distingue o cristianismo...
— Não há nenhum sentido em insistir na história infantil — disse Nietzsche, antes imerso em pensamentos—, na fábula de um outro mundo, que funciona como uma espécie de vingança na vida, prometendo-nos uma “vida melhor, onde há redenção”. Isto é um sinal da vida que declina, decadente.
O garçom ponderou: — Mas não seria o mesmo que criticar um artista por ter mais estima e admiração pela aparência, pela obra, do que pela realidade em si, figurada na obra?
Nietzsche respondeu, firme:
— De maneira alguma. O artista trabalha com a aparência — que, nesse caso, significa seleção, melhoramento, correção da realidade — e não sendo pessimista com a realidade… o artista fala Sim, ele não nega, a tudo que é questionável ou terrível.
O filósofo seguiu irredutível:
—Agora, a redenção religiosa é na ânsia por corrigir — ou, dito de outro modo, perdoar — o ser humano real, que é só o que é possível existir, e trocá-lo por uma fábula, dividindo o mundo entre o há-de-ser e o aparente, entre o real e o pecaminoso. É apenas uma sugestão da moral de aperfeiçoamento cristã, um mal-entendido, uma fatalidade na história da humanidade. Assim como a racionalidade a todo custo, socrática, sem instinto ou paixões…
Camus interveio, frio e preciso:
— Penso comigo que a maior de todas as fantásticas verdades eternas não vale sequer uma lágrima. Ao contrário da experiência de Lemaître, para mim as questões divinas, abstratas, elaboradas pelos homens para apaziguar a ausência de resposta de Deus e o vácuo divino frente ao escândalo da morte e do sofrimento, só prevalecem sobre as questões terrenas para aqueles que não presenciaram um número suficiente de mortos. Falta-lhes, aos religiosos ou crentes, a convivência íntima e trágica com a morte.
Ele continuou, sombrio:
— Pois os espetáculos de morte, o choque do absurdo, conferem lucidez e superação dessas questões metafísicas. Digo que o mundo inteiro do conhecimento não valeria essas lágrimas de uma criancinha moribunda.
O garçom, quase sussurrando, completou:
— “God is God’s best joke.”
O sacerdote ergueu o olhar e declarou com convicção: — É uma questão de crença, senhores. Como está em Atos 16, 31: “Crê no Senhor Jesus Cristo e serás salvo, tu e a tua casa.”
Nietzsche sorriu, quase com piedade:
— Para mim, os clérigos praticam prestidigitação com palavras. Ilusionistas de púlpito, entretendo seus seguidores com truques de linguagem.
O garçom, percebendo o sinal discreto do gerente atrás do balcão, sorriu e prontamente disse, após tocar um sinete reluzente:
—Meus senhores, minhas sinceras escusas pela interrupção deste magnífico debate. Porém, logo receberemos o último convidado, que, assim como os senhores, poderá acrescentar à liberdade de pensamento sua vivência única e significativa, para si e para a humanidade. Creio que vocês todos já o conheçam—embora eu tenha certeza de que não pessoalmente…até hoje!
E dirigiu-se imediatamente à entrada, e mesmo sem que se ouvissem batidas à porta, esta foi aberta. O garçom, de modo inesperado, ergueu ambas as mãos como que para amparar o convidado, que estendeu os braços e foi conduzido ao átrio.
Um senhor de barba e bigode espessos e completamente alvos, com vestes respeitáveis e escuras, e gola branca que se notava abaixo da barba. Conforme se deslocava pelo recinto em direção à mesa, os demais convidados notaram que inegavelmente ele estava cego, com seu deambular inseguro e dependente do ajudante para guiá-lo.
Todos permaneciam em silêncio absoluto. Um lampejo de reconhecimento pela figura histórica fulgurou o semblante de Einstein, Nietzsche, Sagan, Lemaître e Camus, um após o outro.
Ao se aproximar, tateou os braços e estofado da cadeira, e sentou-se. Fitando o vazio, a expressão plácida e amena, afirmou:
—Que aroma delicioso… e que música agradável e fantástica alcança meus ouvidos!…
O garçom anunciou, com postura ereta, dirigindo-se aos convivas absolutamente incrédulos:
—Respeitáveis senhores, tenho o prazer de anunciar a ilustre presença de…Galileo di Vincenzo Bonaiuti de’ Galilei!
— —
- Continua em…






