…si muove.
Capítulo 6 de "A Taverna"
O clima era de choque. Nunca se sabe como a mente reagirá à realização do impossível. Não havia como evitar o sentimento de absoluto respeito — que beirava à veneração — pela figura histórica ali presente. Pouquíssimas personalidades deixaram um legado tão vasto, e a dissonância cognitiva inicial era inevitável, até mesmo para algumas das maiores mentes da humanidade.
Mas para o astrônomo, filósofo e matemático Galileu Galilei — considerado por muitos o pai da ciência moderna —, não havia choque algum. Agia naturalmente, como se estivesse na sala de sua casa. Talvez a falta da visão tornasse mais fácil filtrar os sentimentos e estímulos que a ocasião suscitava. Era ele, e somente ele, em sua própria escuridão.
Essa história começou em….
Se a cegueira o deixava mais à vontade, permitia aos outros absorver a imagem completa e serena daquele senhor idoso. De expressão receptiva, cabelos e barba alvos, parecia a personificação da sapiência.
E foi o próprio Galileu quem rompeu a formalidade e iniciou a conversa:
— Agradeço imensamente a oportunidade de me juntar a tão ilustres colegas e pensadores.
Então virou o rosto levemente para o lado, como se se referisse ao atendente que o havia conduzido à sua cadeira.
— Ricardo e eu já tivemos a oportunidade de conversar previamente — esclareceu —, no que me foram explicadas as circunstâncias atuais, bem como a importância intelectual de todos vocês, caros colegas. Por isso, dispenso-vos das apresentações por questão de prévio conhecimento.
O garçom retribuiu, respeitoso:
— Um privilégio todo nosso, Galileu.
— O que não quer dizer — prosseguiu o cientista — que eu não esteja ansioso por debater e conversar com todos vocês, pensadores. Pois meu tempo é o mais limitado dentre todos, infelizmente, e não poderei partilhar da refeição com os senhores.
Einstein aproveitou a deixa:
— Maravilha-me a sua aparição, Galileu. Não somente por compartilhar a presença de um dos grandes da ciência...
Galileu reagiu com um leve gesto das mãos. Einstein continuou:
— Sim, sim, um dos gigantes... mas também porque tive a confirmação física de algumas implicações matemáticas formuladas por Kurt Gödel. Durante uma de nossas caminhadas até o Instituto de Estudos Avançados, ele expôs-me que poderíamos embaralhar a relação entre o espaço e o tempo — e que a realidade consistiria, na verdade, em uma infinita pilha de cartas do “agora”, que são retiradas, ou entram em existência, sucessivamente.
Acontece que cada observador teria o seu próprio baralho de “agoras”, e nenhuma dessas cartas poderia representar o verdadeiro intervalo de tempo objetivo. Ou seja, questiona-se se o tempo realmente existe.
Sagan, entusiasmado, complementou:
— Então... a viagem no tempo seria possível? Fantástico!
Einstein sorriu, inclinando-se levemente à frente:
— Matematicamente é compatível com a teoria da relatividade. Poderíamos acessar o passado, o presente, o futuro... e voltar.
Camus, estupefato, comentou:
— Ou seja... para nós, leigos em ciência, isso quer dizer que eu não estou enlouquecendo — e que tudo o que estou vivenciando aqui é verdadeiro.
Lemaître aproveitou para acrescentar:
— Pelo menos, matematicamente possível. E compatível com a teoria da relatividade de Einstein.
Galileu exclamou, extasiado:
— Bravo! O triunfo da razão pura, matemática, brilha como a luz do Sol!
Nietzsche revirou os olhos e bufou discretamente. Einstein, percebendo, instigou ainda mais, estreitando o olhar com um sorriso curioso:
— A matemática pura é, à sua maneira, a poesia das ideias lógicas. Concorda, caro Nietzsche?
O filósofo respondeu, sardônico:
— Vocês afirmam que o tempo é uma ilusão, que a matemática é um farol de luz em meio à ignorância. O que vocês não percebem, cientistas, é que ao definirem o belo, deixam de compreendê-lo. Quando as garras do conhecimento e da razão comprimem uma paixão, uma beleza, uma porção de vida... escapam entre seus dedos a essência, restando apenas um significado inútil e sem sentido — uma mera sombra projetada e deformada do real.
Fez uma pausa, e concluiu:
— Caso usassem dos instintos, talvez em suas mãos abertas da razão repousasse o absoluto... o real.
O garçom, então, interveio com ironia leve:
— A ciência é querer adaptar o menor sonho ao maior, Nietzsche.
Galileu simplesmente sorriu.
— Sabem, ao entrar nesta taverna, esperava encontrar dezenas de músicos e seus instrumentos. Então… — inclinou a cabeça, atento — estou ouvindo uma bela melodia, que acentua os sentimentos como nunca antes pude apreciar. Onde estão os músicos? Devem ser muitos.
Sagan respondeu, com um brilho nos olhos:
— Em nosso tempo, posterior ao seu, Galileu, conseguimos perpetuar as notas musicais e a melodia em artefatos, para reproduzi-las ao nosso prazer, a qualquer momento.
— Mas isto é fantástico! — exclamou Galileu, aturdido. — Que maravilha de instrumento! Não posso imaginar que outros avanços o futuro ainda poderá produzir. Sempre tive esperança de que a inventividade e a imaginação prevaleceriam sobre a ignorância.
Galileu demonstrava imensa satisfação, tamborilando os dedos no ritmo da música de Wagner:
— Sabem, faz parte da minha formação a música. Meu pai, Vincenzo, foi músico e compositor. Mas, além disso, foi um investigador incansável dos sons. Estudávamos juntos a tensão das cordas do alaúde em diferentes comprimentos no porão da nossa casa, em Pisa — foi lá que ele descreveu matematicamente algumas dessas propriedades. Já faz muitas décadas, mas lembro-me como se ele ainda estivesse aqui, dizendo-me que a música só evoluiria se se libertasse da autoridade categórica dos números.
Sagan perguntou, curioso:
— Seu pai buscava investigar sons e instrumentos?
— Sim — respondeu Galileu. — E pude ver que a experimentação com objetos e materiais de diferentes formas poderia demonstrar que a teoria musical vigente estava obsoleta.
Einstein interveio:
— Você foi o precursor do método científico — a experimentação guiando o pensamento teórico. Viu isso também em seu pai?
— Em minha época — respondeu Galileu —, a filosofia do conhecimento, que vocês chamam de ciência, era considerada verdadeira em sua pureza teórica. A autoridade dos antigos era intocável por muitos.
Einstein assentiu.
— Então, enquanto seu pai desafiou a inviolabilidade pitagórica dos números sobre a música, você destronou o conceito aristotélico milenar de que a Terra era o centro das esferas celestes.
Galileu sorriu:
— Podemos dizer que sim. Aprendi desde cedo a questionar. E, além da teoria, trazer o que observava na natureza. Perguntava-me se haveria outras explicações — pois o que eu via através da minha luneta contradizia frontalmente a visão geocêntrica, da terra imóvel, e apoiava a teoria copernicana.
Einstein respondeu:
— E foi baseando-me em sua relatividade, Galileu, que iniciei a minha teoria da relatividade restrita. Assim como você, defendi que, estando a Terra em movimento uniforme, não se pode dizer se ela se move ou está parada — depende apenas do observador. Reconheço em sua obra a luta apaixonada contra qualquer tipo de dogma baseado na autoridade.
— Embora um católico devoto — respondeu Galileu, inclinando-se ligeiramente —, pude cultivar uma independência de pensamento. Nunca pretendi afrontar a Escritura Sagrada, mas contestei sua interpretação literal equivocada.
Einstein riu, o cachimbo pendendo na lateral dos lábios.
— Curiosamente, muitos colegas me atacaram pelo oposto: minha teoria foi construída a partir de princípios matemáticos, e não de observações. Mesmo assim, foi confirmada depois por elas.
Galileu levantou o queixo, com serenidade:
— Amigos, não os vejo, mas sei quem são — luminares de suas épocas, cada qual à sua maneira.
Sagan, hesitante, tomou coragem e perguntou:
— Galileu… poderia nos informar a sua atual situação?
— Claro. Atualmente, estou em cárcere formal em minha casa, próxima a Florença, sob ordem do Tribunal do Santo Ofício do Papa Urbano VIII. Deixei furioso meu antigo amigo Maffeo Barberini, agora Papa, ao publicar meu Diálogo, em 1632. Nele, há uma exposição dos dois sistemas — o heliocêntrico e o geocêntrico — comentados pelos personagens.
Então, com um leve sorriso e um tom quase conspiratório, acrescentou em voz baixa:
— Mas o segredo, meus amigos, é que nunca parei de escrever. Publiquei recentemente, nos Países Baixos — longe do alcance da Inquisição —, um livro sobre materiais e movimento, e estudo a queda de projéteis.
Galileu apesar da idade apresentava um brilho juvenil nos olhos.
Pela alegria contagiante, Sagan entrou no clima e sussurrou com cumplicidade:
— E como foi exatamente a questão do seu julgamento? — perguntou. — A imagem do senhor de joelhos, abnegando suas convicções e teorias, é extremamente forte e impactante. Até hoje é lembrada, mais de quatrocentos anos após.
Galileu respirou fundo antes de responder:
— Reconheço que o meu tempo foi produto do endurecimento da mão forte do papado, ainda em oposição ao movimento reformista luterano. Mas agora, mais velho, entendo que minha decisão de divulgar e comprovar a hipótese de Copérnico colocou Sua Santidade em xeque. E, encontrando-se entre apoiar um velho conhecido e a ameaça à própria autoridade, escolheu o caminho menos danoso ao papado. Creio que Urbano acreditava que a teoria copernicana jamais poderia ser provada. Daí que a tratava como mera hipótese, inicialmente sem implicações teológicas.
Sagan o interrompeu:
— Sentiu medo, Galileu?
Galileu mudou ligeiramente de postura antes de responder:
— Tentei atenuar meu discurso, mostrando que as novas descobertas que fiz — as fases de Vênus, os satélites de Júpiter, as manchas solares e o relevo lunar — não eram compatíveis com a velha imutabilidade divina das esferas celestes. As duas primeiras, especialmente, indicavam o movimento da Terra e dos demais planetas ao redor do Sol. Não previ que pudessem ser interpretadas como ofensas ao Papa.
Sagan insistiu:
— E o julgamento da Inquisição?
— Foi longo — respondeu Galileu, com voz grave. — Fui obrigado a me retratar e a negar minha visão heliocêntrica para que minha pena fosse atenuada, sendo condenado apenas como suspeito de heresia. Caso contrário, seria torturado e, poderia receber pena capital.... Não me envergonho. Um homem deve saber quando recuar. E mesmo que minhas obras sejam banidas pela Igreja, ninguém pode proibir a verdade. Tenho certeza de que um dia outros, mais corajosos, virão revelar a natureza como ela é — não como imaginam que seja. Sem os grilhões da autoridade religiosa ou ancestral. É inevitável. É apenas uma questão de tempo.
Sagan o observou em silêncio. Galileu, então, murmurou quase para si, abatido:
— Talvez eu tenha vivido em um tempo ainda não preparado para receber as verdades da natureza e a natureza das verdades.
Sagan interveio:
— Sem dúvida. No seu século, a ciência moderna dava seus primeiros passos, tentando se diferenciar da filosofia e tendo a teologia com a a rainha das ciências. Havia severas dúvidas sobre a legitimidade de extrapolar o estudo dos fenômenos naturais para além dos sentidos humanos — com o uso de instrumentos. No seu caso, a luneta, usada de forma pioneira na busca por evidências da própria natureza.
— Você, Galileu, em verdade construiu as bases para uma nova ciência — disse Sagan, com um leve aceno. — Um estudo do movimento, contradizendo frontalmente o princípio aristotélico, este que tornava o movimento da Terra teoricamente impossível, já que não é percebido naturalmente. Séculos depois, sua ciência seria continuada por Newton e, mais tarde, por Einstein, aqui presente.
— Aristóteles dizia que, se a Terra estivesse em movimento, todos o sentiriam — completou Einstein.
Galileu ergueu os olhos, um leve sorriso emoldurando a serenidade da voz. — Realmente, em minha época havia três modelos principais para explicar os corpos celestes. Mas as minhas observações foram bastante convincentes em apoiar o modelo heliocêntrico.
Lemaître interveio com calma: — O cardeal Bellarmine, no seu tempo, Galileu, ratificou que não havia problema em discutir a obra de Copérnico como hipótese para fins de cálculo e ensino prático, desde que não se afirmasse como verdade física enquanto não houvesse demonstrações irrefutáveis.
— Sim — concordou Sagan. — Mas essa condição de uma prova convincente para reconsiderar a interpretação dos textos bíblicos era apenas uma permissividade condicional. De todo modo, a afirmação continuava contrária ao sentido literal das Escrituras, o que a tornava inaceitável para os teólogos da época. Mesmo que houvesse distinção entre dogma e opinião teológica, o que importava era o impacto prático — e, no caso, a condenação de um cientista como herege, ou, melhor, “veementemente suspeito de heresia”.
Camus cruzou os braços e murmurou, grave: — E não há como defender o ato eclesiástico apenas como disciplinador, devido ao grande impacto ético e futuro na vida e obra de Galileu.
Lemaître assentiu. — Foi, sim, utilizado como condição indevida para criar-se o mito de oposição entre ciência e religião, entre razão e fé.
— Mesmo que o episódio tenha sido amplificado, ou mesmo simplificado, isso não diminui o fato — replicou Sagan. — Houve censura, houve proibição de livros e textos, inclusive daqueles que Galileu ainda viria a escrever. Houve sanções pessoais. Foi obrigado a renegar sua obra sob coerção, com ameaça de tortura física, e recebeu prisão domiciliar. Creio que poderia ter sido pior, caso Galileu não tivesse certa proeminência na sociedade.
— É verdade — disse Galileu, com voz firme. — Bellarmine realmente havia escrito que a posição copernicana poderia ser tratada como hipótese útil para cálculos. Mas ele também condicionou esse pensamento à proibição de afirmá-la publicamente como verdade física na ausência de provas.
Lemaître explicou, ponderado: — A situação política e intelectual da época era de tensões religiosas. Admitir publicamente uma teoria que parecesse contrariar as Escrituras era considerado perigoso. Não nego que a Igreja cometeu erros institucionais concretos — censura, proibição, processos. Mas perdemos mais ainda com o uso ideológico atual desse episódio como oposição entre ciência e fé, o que se tornou um ressentimento indevido.
Galileu então se inclinou um pouco à frente, o olhar vazio distante. — De fato, nunca foi minha intenção opor as Escrituras Sagradas à filosofia natural, à matemática ou à astronomia. Como já disse, sou católico devoto e creio que nada disso teria ocorrido se meus detratores tivessem seguido o sábio conselho de Santo Agostinho: “Agora, então, sempre praticando uma moderação séria e pia, não devemos acreditar superficialmente em nada que seja assunto obscuro, pois podemos rejeitar algo que mais tarde pode ser verdadeiramente mostrado como não contrário aos livros sagrados do Velho e Novo Testamento.”
Silêncio pairava no ar. Depois, ele acrescentou com amargura contida: — Meus detratores tentaram proteger as falácias de seus argumentos com o manto da simulada religiosidade e da autoridade das Escrituras.
— O que queremos dizer é que o argumento de que Galileu não possuía a prova empírica definitiva do movimento da Terra não significa que sua posição fosse irracional ou mera convicção pessoal, não é mesmo? — perguntou Sagan.
— Uma vez que pude maravilhar-me com as descobertas astronômicas de que os corpos celestes não eram ideais de imutabilidade — respondeu Galileu. — Assim, não pude deixar de afirmar que os fundamentos físicos do sistema geocêntrico ptolomaico-aristotélico inexistiam.
— Ou seja, você não podia provar que a Terra se movia, mas podia provar que o modelo que dizia que ela não se movia estava errado — comentou Einstein.
— Como já disse, a ausência de prova não é a prova de ausência — acrescentou Sagan.— A ausência de prova definitiva não invalida uma hipótese, se ela for a melhor explicação disponível.
— Claro, não podemos confundir a falta de provas definitivas com a ausência de racionalidade científica — completou Lemaitre.
— E para que eu possa descansar minha mente — disse Galileu, ansioso —, conseguiu-se comprovar definitivamente a teoria de Copérnico em um futuro?
— Meu caro Galileu — respondeu Sagan —, foi somente em 1838 que houve uma prova física direta: a chamada Paralaxe Estelar. Infelizmente, sua teoria das marés não estava correta.
A reação de Galileu foi um misto de êxtase e resignação.
— Newton, que já foi citado aqui, progrediu nos estudos do seu último livro e formulou a gravitação universal, mas sem conhecer a natureza da força, que só poderíamos entender melhor séculos depois — comentou Einstein. — E nem por isso ele foi tachado de irracional ou meramente convicto. As suas evidências observacionais, Galileu, fortes e inéditas, invalidavam o sistema geocêntrico.
— Houve fundamentos empíricos, evidências válidas e sólidas, consistência lógica e raciocínio correto em seu modelo — comentou Sagan. — Posteriormente, outros cientistas — ou filósofos naturais, se preferir — confirmariam e complementariam suas hipóteses, que você mesmo havia previsto, mas não pôde obter em seu tempo.
— Newton, que citei, conseguiu fechar o circuito do seu pensamento — disse Einstein. — As mesmas leis que fazem uma pedra cair na Terra também mantêm a Lua em órbita e governam os movimentos dos planetas. A gravitação universal, a Terra e o céu obedecem às mesmas leis.
— De tudo, o mais importante, Galileu, é o princípio correto de que a observação deve corrigir a interpretação da Escritura e não o contrário — finalizou Sagan. — E embora você não tivesse todas as provas, sabia mais do que sua época pôde demonstrar, quando nascia a ciência. Além disso, sua capacidade preditiva de antecipar corretamente futuras observações se encaixa em um contínuo de comprovações. É o ápice da ciência.





