Fogueira
Capítulo 7 de "A Taverna"
O ar parecia mais denso ali na Taverna, e os convidados — figuras improváveis reunidas em um ponto impossível do espaço-tempo se moviam inquietas. A rememoração do julgamento histórico de Galileu Galileu agitava os ocupantes da mesa central da Taverna, e pairava como um odor antigo de fumaça e ferro queimado. Especialmente porque um personagem central do episódio que marcou a história da ciência ali estava. Não havia como evitar a afeição por Galileu ali presente, um senhor cuja idade já cobrava seu preço, cego, cujos olhos haviam testemunhado nos céus os fatos que abalariam para sempre os dogmas religiosos – e sofreu por isso. Este sentimento era especialmente forte no cientista Carl Sagan, que até então tentara esconder o fervor, falou sem conseguir mais esconder a indignação, socou de leve a mesa:
— A Inquisição condenou milhares como hereges. Investigou, acusou e puniu pessoas sob acusações de feitiçaria e blasfêmia. Não avaliaram a ciência da sua obra, Galileu. — a voz trêmula de emoção. —Era um mecanismo criado para proteger o dogma religioso e a autoridade do papado.
Galileu, com as mãos trêmulas, parecia distante:
—Ainda posso sentir o clamor da multidão nas ruas enlameadas, um misto de excitação e curiosidade sobre o veredito do tribunal inquisidor. — engoliu em seco: —Foram-me revelados os possíveis instrumentos de... tortura, embora de uma maneira tão natural, tão normal que me deixei tomar por um sentimento de espanto.
Ninguém ousou proferir nenhuma palavra por alguns segundos. O silêncio parecia cobrir a todos pesadamente.
Confira como essa história começou…
Galileu levou a mão ao rosto vazio de luz — talvez para enxugar algo que não admitia ser lágrima.
— Sua confissão...— prosseguiu Sagan, a voz cortando o ar como uma lâmina que não queria feir, mas revelar — foi arrancada sob a ameaça da tortura. A autoridade teológica utilizava o Santo Ofício como sua mão forte, uma ferramenta para punir os supostos heréticos…
Sagan permitiu-se dizer:
—E se eu fechar os olhos, quase ouço o estalar das cordas e os gritos abafados que chamavam de justiça. Era a lembrança viva da centralização do poder e da repressão doutrinária. Um teatro de legalidade. — disse mais baixo, como se pronunciasse algo profano— Ora vejam, o inquisidor acumulava o papel de acusador e de juiz. Buscava a verdade… ou apenas uma confissão de culpa forçada?
Ouviu-se o crepitar da lareira, um estalo seco que pareceu fazer Galileu estremecer.
O garçom interveio, colocando discretamente o vinho sobre a mesa, como quem oferece silêncio. A voz dele veio como uma sopro calmo:
— A fé não cresce pelo ressentimento ou pela rejeição da razão, mas pelo reconhecimento dela — disse com serenidade.
Camus, recostado na cadeira, com um leve sorriso, meio sombra e meio dúvida, replicou:
— Meu amigo, será a autossuficiência da razão antagônica à religião? — Continuou a sorrir, mas seus olhos tremiam, como se temessem a própria resposta. — Creio que devemos nos guiar mais pelos atos do que pelas palavras. As palavras...ah, estas servem mais para ocultar a verdadeira essência e intenção do que para revelá-las.
Fez uma breve pausa, os olhos fixos na taça que girava em seus dedos, fitando o movimento do vinho como quem contempla um abismo:
— E existe melhor maneira de imputar uma culpa inexistente do que por meio de um julgamento com cartas marcadas? — ||Seus olhos brilharam na penumbra. — Pelo menos o verniz de civilidade é mantido — o disfarce elegante do absurdo, não é mesmo?
Sagan não hesitou. Ergueu o olhar, como quem finalmente enfrenta séculos de silêncio:
— E vocês não pensam que o próprio Copérnico, com sua teoria de que a Terra girava em torno do Sol, também buscou contornar o perigo de sua hipótese? Acham que ele não temeu?— perguntou, olhando de um lado para outro como quem lança um desafio.— Ele recorreu ao estratagema da prudência. Meus caros, ele só publicou sua obra já em seu leito de morte. E adivinhem o que estava escrito na introdução, apócrifa e não autorizada, escrita por um teólogo luterano?
Sagan endireitou a postura e recitou, com ironia medida e um timbre de quem recita um verso amargo, a sombra do seu rosto distorcida pela chama da lareira:
— “O autor desta obra nada cometeu que mereça reprovação... Com efeito, não é necessário que essas hipóteses sejam verdadeiras; bastam para o cálculo...essa arte ignora simplesmente e por completo as causas dos movimentos aparentes e irregulares... inventa algumas na imaginação, apenas para estabelecer corretamente o cálculo.”
Fez-se outro silêncio. Longo. A lareira rugiu.
Prosseguiu como meio sorriso:
— Como se dissesse que nem mesmo Copérnico acreditava realmente no que havia descoberto! — completou Sagan— Um mero exercício de cálculo abstrato que, ainda por cima, não deveria refutar a doutrina estabelecida. Este era o espírito de muitos teólogos daquela época — e isso não pode ser ignorado.
Galileu respirou fundo, com semblante grave e voz trêmula:
— No meu caso, primeiramente, tentaram espalhar entre as pessoas comuns que as ideias de minhas proposições eram contrárias à Escritura Sagrada e, consequentemente, heréticas e sujeitas à danação.
As mãos envelhecidas se comprimiam, os lábios constritos, e continuou:
— A natureza humana é tal que se inclina à opressão dos outros, mesmo injustamente.—murmurou — Esperavam que a semente plantada na mente insincera crescesse como árvore e alcançasse o céu — espalhando o rumor de que minhas ideias seriam declaradas heréticas pela autoridade suprema.
Galileu fez uma pausa, cansado. O som distante do crepitar da lareira pareceu pontuar o silêncio. O velho cientista sobressaltou-se na cadeira, assustando a todos, as mãos tremendo procurando por apoio.
O garçom apoiou cuidadosamenta suas mãos nos ombros da figura abatida, sussurando-lhe:
— Nada temas aqui, caro Galileu...estás entre amigos e longe de qualquer perigo. Na Taverna, teus pensamentos são protegidos de tudo e de todos, inclusive da Inquisição.
Galileu suspirou,agradecendo com um sorriso contido, e continuou:
— Por isso enfrentei, com as forças de que dispunha, o tribunal. Se aceitasse calado, condenariam todas as outras observações astronômicas e físicas que dependiam das minhas.
Ergueu o olhar, mais firme:
— O problema em si está na leitura literal da Bíblia.
Sagan cruzou as mãos sobre a mesa, o olhar faiscando. Por um instante parecia um réu reconhecendo um cúmplice — Você escreveu esses seus argumentos antes, não é mesmo? A famosa carta à Grã-Duquesa Cristina...
— Sim — respondeu Galileu com serenidade, segurando a borda da mesa. — Em 1615. Disse que descobrira coisas novas no céu. Coisas que antes ninguém havia visto. Particularidades que estavam invisíveis até o nosso tempo. E então…ergueram-se contra mim alguns opositores que agiam como se eu mesmo tivesse colocado essas coisas com minhas próprias mãos no firmamento, apenas para confundir a natureza e as ciências.
Galileu acrescentou, inclinando-se levemente para frente, com aquele ar entre ternura e ironia:
— As pessoas esquecem que uma multidão de verdades contribui para o questionamento, e este, por sua vez, fortalece as disciplinas — em vez de destruí-las ou diminuí-las. Ao mesmo tempo, mostram maior afeição às suas próprias opiniões do que a verdade. — Um leve humor brilhou no rosto enrugado, logo engolido pela gravidade.— Assim, meus opositores procuram negar as novidades e, para isso, produzem e publicam textos cheios de discursos inúteis, salpicados de citações das Escrituras, com passagens que não compreendem apropriadamente. Isto, em verdade, é grave. E não ocorreria se interpretassem a Bíblia com moderação, e não literalmente.
Sagan assentiu, a voz soando como um tilintar de uma experiência bem-polida:
— Quando surgem hipóteses ou teorias que contradizem o senso comum, as reações contrárias continuam fortes, mesmo em nossa época. A resistência ao novo não desapareceu — disse com suavidade — No seu tempo, dominado por uma instituição religiosa poderosa, você sofreu de forma drástica o que hoje experimentamos de modo diferente. Mas a resistência — seja religiosa, política ou mesmo científica — ainda existe...Só mudou de roupa.
— Aqui... — disse Galileu com esforço, como quem mede o peso da própria história antes de responder. — Creio que aqui, na Taverna, me sinto em segurança para poder declarar, sem receio de punição: em disputas sobre fenômenos naturais, devemos começar não pela autoridade de passagens da Escritura — ou, em vosso caso, de autoridades políticas ou acadêmicas —, mas pela experiência sensorial e pelas demonstrações necessárias.
Seria medo ou sofrimento o que aqueles velhos olhos cegos exprimiam?
Olhou em volta, com o brilho do velho mestre em seus olhos:
— Uma vez que a Escritura Sagrada e a Natureza derivam igualmente da mente de Deus — a primeira, como o ditado do Espírito Santo; a segunda, como a mais obediente executora das ordens divinas —, é natural que ambas falem a sua verdade. A Escritura fala à alma simples...por isso, às vezes, pode dizer algo que não corresponde à verdade literal — é por misericórdia para com os mais simples.
— De qualquer modo — continuou Galileu, a voz mais confiante —, a Natureza é inexorável e imutável.
— E o homem, Galileu?— cortou Camus, com voz quase amarga.— Quando foi que ele se tornou menos cruel do que a própria Natureza?
Galileu recuou um pouco, tocado pela pergunta, surpreso. — A Natureza nunca viola as leis que lhe foram impostas, e não se importa se suas razões recônditas e modos de operar são acessíveis ou não ao entendimento humano. Não se preocupa se a entendemos ou não.
Lemaître que ouvira tudo em silêncio quase reverente, finalmente interveio com polidez:
— Recordo-me de algo que citou certa vez..: “Deus deve primeiro ser entendido pela Natureza, depois, pela doutrina.”
— Sim. — confirmou Galileu, mais à vontade. — E acrescento um pouco de Santo Agostinho. Ele advertia sobre o perigo de alguém, ao não compreender as palavras divinas, achar em nossos livros algo que pareça contradizer as opiniões aceitas.
Fez um leve gesto com a mão:
— Agostinho dizia que os autores sagrados não buscavam ensinar a forma do céu ou da Terra...pois isso não é essencial à salvação de ninguém.
Lemaître o cumprimentou com um leve aceno:
— Ou seja, a intenção do Espírito Santo é ensinar-nos como alguém pode alcançar o céu — e não como o céu vai ou está.
Einstein tirou o cachimbo dos lábios e soprou a fumaça devagar, como quem pensa em voz alta:
— Então podemos concluir que a interpretação literal de qualquer texto — seja religioso, político ou científico — e a confiança excessiva em argumentos de autoridade, quaisquer que sejam, são nocivas ao conhecimento humano. Meus caros, a única conclusão possível é que independência do pensamento é condição essencial para o avanço da ciência, e, portanto, da humanidade. E acrescentando mais tabaco ao fornilho do cachimbo, disse, com uma voz sombria que parecia não pertencer ao próprio Einstein: — E se não pudermos controlar nossa própria mente, alguém —ou algo— desejará fazê-lo por nós. Sejamos donos de nós mesmos.
— O garçom disse, parcialmente iluminado pelo brilho amarelado da lareira distante: — de Oscar Wilde, que já nos brindou com sua presença: “Sabedoria está em todo lugar/ Embora o mar tempestuoso não a possua,/ E a imensa e profunda resposta/ Não esteja em mim.”
As palavras pairavam no ar, como se também esperassem resposta.
E por um instante, ninguém na Taverna ousou respirar.
...continua.





