Todo e qualquer passo teu, eu o conheço antes mesmo de o dares. O caminho que escolhes — ou o descaminho —, observo no desenrolar do fio da vida. Leio o que foste, o que és, o que serás. Sou a distribuidora: concedo a cada ser uma porção de vida, determino quanto cada um deve permanecer, seja herói ou pérfido, jovem ou velho, admirado ou rejeitado. Quão longo é o fio da vida, eu imponho. Não penso em tempo, mas em comprimento. Fios mais longos ou mais curtos, eu os meço, e em cada fio desenvolto demando quantas provações haverão de enfrentar — para o bem ou para o mal. Já vi humano incapaz de mover sequer um membro, e nesta imobilidade absoluta, observar e decifrar o universo profundo. E a tudo ampliar. Já presenciei a perda devastadora da primogênita por um pai que, mesmo arrasado, desvendou o segredo da evolução por seleção natural. E a tudo modificar. Durante o comprimento do fio de apenas uma única vida, tudo pode mudar, impermanente, por isso tens, mortal, minha secreta admiração oracular: nem curto, nem longo, apenas o suficiente. Na Taverna, a anfitriã Sabedoria entrelaça os escolhidos. Fios de excepcional beleza e mérito, alguns reluzentes, outros espessos e ásperos, inelásticos, ou delicados e maleáveis. Todos diferentes, todos reunidos ao bel prazer da sapiência, para juntos formar um tecido para representar o que há de melhor na humanidade. Eu sou Láquesis, a segunda das três irmãs; Determino o comprimento da tua vida, mas não tuas escolhas; estas, pertencem somente a ti: Virtude ou vício/ Força ou fraqueza/ Graça ou maldição. R.T. Schulz
Na Taverna, sob o lume da curiosidade e da razão, vozes se entrelaçavam, formando, sem que soubessem, o delicado tecido do destino compartilhado.
Os quatro reunidos confortavelmente ao redor da mesa principal se puseram a iniciar o banquete sem demora, pois a espera havia aguçado o apetite.
Pairava no ar a expectativa que se tem quando figuras indiscutivelmente memoráveis se encontram: Albert Einstein, Albert Camus, Carl Sagan e Nietzsche, reunidos e dialogando fervorosamente. Não se tratava de um sentimento opressivo ou intimidatório, por mais importantes que fossem estas personalidades, pois eram reconhecidas não pelos seus cargos, títulos ou postos hierárquicos. A relevância de cada um deles se dera única e exclusivamente pelos seus feitos que marcaram a história da humanidade, cada um ao seu modo e em seu tempo, utilizando o que temos de melhor: o pensamento.
Portanto, não havia medo, receio ou intimidação. Havia o oposto desta sensação, em verdade. Um júbilo contagiante era quase palpável no ambiente.
Mais duas personagens intrigantes estavam presentes, um senhor bem vestido adjacente ao balcão, conversando animadamente com o gerente, e homem obscuro, tragando seu longo cachimbo e de capuz encobrindo parcialmente a face, ocupava uma mesa mais distante, nas sombras.
E, não podemos esquecer, quatro meninas aparentemente ocupadas com tarefas matemáticas e leitura divertiam-se próximas à lareira, sob o olhar auspicioso do garçom.
O pouco tempo disponível, se é que se podia expressar-se assim naquele ponto do espaço-tempo, tornava ainda mais preciosos aqueles momentos.
E, Ó oportunidade, grandes mentes dispostas a compartilhar com os afortunados presentes o que tinham de mais precioso: suas ideias e seus ideais. Ambos devidamente fundamentados, pois tal como um exímio esgrimista, quanto mais capaz e preciso o oponente, mais feroz é a batalha, mas também mais gratificante é a disputa.
Outro ponto intrigante, além da intersecção estável de diversas linhas de espaço-tempo, era a capacidade preservada de pleno entendimento entre todos os convivas, visto que épocas distintas, com costumes e, especialmente, línguas diversas poderiam oferecer um entrave substancial para a contenda de pensamentos; não havia dúvida de que este fora um obstáculo menor para as proprietárias do local e para a anfitriã, uma vez que não havia qualquer sinal de dificuldade linguística. Todos entendiam a todos, como se em sua língua materna. Um grande poder deveria orquestrar, logo se conclui, aquele evento.
É claro, para que se evitasse qualquer distúrbio emocional ou atraso adaptativo daquelas pessoas de interesse para aquela situação ímpar, medidas foram tomadas antecipadamente para auxiliá-los durante a transição.
Instantes após o anúncio do início do banquete, e, portanto, da contenda cerebral, Einstein, o convidado que aparentava mais idade — pois, em ordem cronológica, Nietzsche havia nascido mais de trinta anos antes de Albert Einstein, — foi quem tomou a iniciativa, enquanto desdobrava o guardanapo de linho branco:
— Penso que o curioso é o grande amante do conhecimento…e para a ciência a curiosidade e a paixão pelo saber são vitais.
Ao que Carl Sagan, visivelmente o mais entusiasmado, complementou: — Não só isso. O que me fascina no meu trabalho como astrofísico e na ciência como um todo é a sua maravilhosa regularidade.
A menção de Sagan pela sua atividade arrancou um discreto sorriso de satisfação de Einstein, sentado no lado oposto da mesa, e continuou: — É claro que erramos como qualquer outro, sendo cientista ou não, mas temos um coringa na manga: o ceticismo. Verificamos constante e mutuamente as afirmações uns dos outros. Cá entre nós, —disse, Sagan parecia se divertir — adoramos desmentir a afirmação de um colega tanto quanto descobrir algo inédito. Duvido, porém, que um sacerdote também faça o mesmo. Eis a diferença metodológica entre religião e ciência, entre o clérigo e o cientista.
Aqui vale um aparte: naquele ambiente, a liberdade de palavra e pensamento não se restringia somente aos convidados, digamos, protagonistas, à mesa principal…se admitia e até se incentivava a participação e interlocução dos demais coadjuvantes; funcionava como uma espécie de alívio da tensão inicial e trazia leveza e fluidez necessária à Taverna. E mantinha-se o fluxo de pensamento ativo de acordo com as orientações previamente recebidas.
Por isso, tanto o garçom quanto o gerente e os demais presentes, sem distinção, frequentemente participavam ativamente com um ponto de vista ou outro; para os dois primeiros, uma espécie de bônus gentilmente concedido pela anfitriã.
— Muitas pessoas se ressentem, como se fosse um vício, de que sejamos céticos — redarguiu o garçom, providenciando mais vinho branco ao astrofísico (e que, aliás, também era astrônomo, cosmólogo e biólogo).
Sagan fez uma pausa, pensativo — Porque não compreendem que essa postura não indica fraqueza de convicção, mas tolerância e abertura à ambiguidade. Afinal, ausência de prova não é prova de ausência. Minha convicção, e creio que seja de Einstein também, é de que a ciência não busca a Verdade absoluta, mas aproximações sucessivas dela.
Einstein concordou, antes de pedir mais vinho: — É nesse ceticismo, nessa dúvida cultivada, que está a percepção de que talvez jamais teremos a equação definitiva da gravidade, por exemplo.
— O que não quer dizer que a teoria não funciona.— Concluiu Sagan, pragmático.
— Foi isso que quis dizer, Sr. Einstein, quando afirmou que Deus não joga dados?— questionou Albert Camus, ao seu lado.
— Bom, estava me referindo à mecânica quântica e variáveis ocultas... Minha ideia é a de um universo regido por leis físicas. Não consigo digerir a indeterminação ou o acaso da mecânica quântica.— respondeu Einstein, enquanto os demais entreolhavam-se dando de ombros sem entender os pormenores, exceto, claro, Sagan.
—Mas estas salsichas estão deliciosas!— brincou Einstein, provocando risadas.
— E essas variáveis ocultas seriam provas da existência de Deus?— interpelou respeitosamente o garçom.
— Como disse, caro Ricardo, atribuo isso a Deus, mas devo deixar claro que minha visão não corresponde ao Deus religioso, tradicional… mas sim a um princípio cósmico, uma cosmogonia, não a um Deus como entidade pessoal, sabe? As leis da física, em seu conjunto, são onipresentes, e em sua soma são universais… são as mesmas em todo lugar, nesta galáxia ou em qualquer outra. São onipresentes e onipotentes, já pensaram desta forma, meus amigos?
E após saborear satisfeito uma porção do Schnitzel, completou: —Esta, por acaso, não é a definição de Deus? O que não entendo é por que as pessoas se importam com a opinião de um velho físico. Sou apenas mais um homem, nada mais.
— Asimov certa vez escreveu que os astrônomos nunca admiram as estrelas. A simples visão do céu noturno os inquieta.— observou Ricardo, o garçom.
— Como apreciar o céu estrelado com os olhos do poeta? Acredito que a ordem da natureza revele algo maior, acessível seja pela admiração poética ou pela razão.— Einstein concordou.
Sagan extasiava-se tanto com a sua lagosta a Thermidor quanto com a conversa: — Humm… a ciência é a forma mais… honesta de buscar sentido. Mas, diferente da visão religiosa, esse sentido não vem de fora, de um livro escrito há milênios. Ele nasce em nós: fazemos nosso próprio sentido para a vida — e seria negligência não fazê-lo.
Camus, elegante, bebeu da sua taça de vinho tinto: — Concordo com você, Sagan, quanto a não existir uma essência humana dada por Deus. Com isso, cada homem tem em seus ombros um peso maior que Atlas, que suportou o mundo, pois devemos suportar a própria liberdade e somos responsáveis por tudo. Penso que nos fazemos e construímos pelas escolhas que tomamos.
Ricardo completava-lhe a taça: — Isto me lembra, certa vez, aqui, Roberto Saviano, dizendo: “Pergunto-lhe se é capaz de realizar esse primeiro gesto de liberdade que está em conseguir pensar-se diferente, pensar-se livre, não se resignar a aceitar como um destino natural o que é obra dos homens.”
Nietzsche sorvia de sua sopa fumegante, seus olhos profundos: — Vocês perdem seu tempo precioso de vida, e o meu, nessa ladainha, pois não nos resta mais Deus. Nós o matamos, já havia alertado. E digo eu, que foi incentivado desde a infância a se tornar ministro luterano... Também me interesso, queridos Einstein e Sagan, por astronomia, mas não só isso: poesia, música, botânica, geologia, teologia, filologia, enfim, tudo que apraz à mente. Para entender do que falam, vocês deveriam se aprofundar mais no conhecimento humano em geral, não somente em cálculos.— Aparentemente, simpatia não era seu forte.
O comentário ácido tomou a todos desprevenidos. — Se querem se tornar sábios, precisam querer experimentar certas vivências, mas aviso: saibam que podem ser devorados ao tentar. Ah, maldita dor de cabeça! — exclamou Nietzsche.
Sagan questionou-o, curioso: — Filologia?
Nietzsche, pressionando as têmporas: — Sim, estudo de documentos antigos ligados a culturas ou línguas. Fui professor desta cátedra em Basileia, e me aprofundei na cultura greco-romana.
— Não foi lá que conheceu Richard Wagner? — Ricardo apontou para o gramofone, que preenchia o ambiente com a melodia da Cavalgada das Valquírias.
— Sim, nós fomos amigos de certa feita, pelo menos até Richard ter suas ideias corroídas contra os judeus. Uma lástima! Enfim, não me interessa mais, separo a arte do artista.—falou Niezsche, afastando abruptamente as mãos do prato. — O que me interessa é que nós apenas temos dois caminhos — e em ambos perdemos, em ambos somos derrotados. Quais sejam: na separação da tradição, sucumbimos ao extraordinário; ou na permanência na tradição, nos escravizamos à ela. Para onde quer que caminhemos, perdemos.
O tom de voz de barítono, as vestes formais e a figura cansada, quase urgente, de Nietzsche pareciam ter efeito hipnótico sobre os ouvintes:
— Vislumbro em minhas visões — ou, segundo detratores, alucinações — uma nova humanidade restaurada, longe do ranço de ideologias, sejam elas religiosas, liberais, positivistas, socialistas, o que quer que sejam! Precisamos de algo mais que humano. Vocês, meus caros ditos cientistas, se contaminam com o fanatismo socrático com que toda reflexão grega se lançou à racionalidade.
A atenção de todos se concentrava na figura que, antes frágil e consumida, agora se agigantava diante deles.
Nietzsche, amargando um sorriso entredentes: — Sócrates fez da razão um tirano. Sim, esta pela qual você tanto preza, Sagan. A racionalidade foi percebida como salvadora, assim como você a percebe, como último e derradeiro recurso contra os desejos obscuros, os instintos, contra o inconsciente. Vocês são meros discípulos modernos de Sócrates.
— E qual o problema, caro Nietzsche, em colocar a razão como virtude?— perguntou Einstein.
— Ora, Albert, é necessário apontar o erro que havia em sua crença. Veja só: crença na racionalidade a qualquer preço!— exclamou Niezsche, seu colossal bigode atrapalhando-lhe a refeição.
Afirmação que encontrou eco no outro Albert, Camus, meneando a cabeça em concordância.
O gerente da Taverna, detrás do balcão, interveio: — Creio que a fé é o pilar principal da ciência e da transcendência, caro Nietzsche.
— Querido amigo Fábio, nosso competente bartender, claro, li seu artigo sobre a fé epistemológica....
Ao que Sagan explicou:— Por exemplo, a fé no funcionamento do método científico. Porém, sempre existirá uma condição prévia necessária para qualquer pensamento. E a ciência se poria a provar ad eternum, em um ciclo infinito de embasar o fundamento.
Nietzsche, ajeitando o colete, falou: — Calma, querido Sagan, me dê um minuto. O que eu quis dizer é que...
Camus rindo, disse: — Não creio que vivi para ouvir Nietzsche pedir calma...
Nietzsche continuou, consternado: — O que eu gostaria dizer é que toda a moral do aperfeiçoamento, querido Sagan — que inclusive você citou como regularidade cética da ciência, mas também a cristã —, foi mal entendida. Sim, mal compreendida! A racionalidade almejada como ideal grego, socrático, a todo custo, a vida clara, fria, cautelosa e consciente, sem instinto, na verdade em resistência aos instintos, foi ela mesma apenas uma doença; de modo algum o caminho de volta à virtude, à felicidade!
— Mas qual seria a alternativa, se a razão não é a resposta, uma vez que sempre perdemos, sucumbidos ao extraordinário ou escravizados à tradição, como havia dito? — perguntou Ricardo, em tom de desesperança, e com o lápis pronto a anotar pedidos e pensamentos.
— Ora, — replicou Nietzsche com firmeza, — caso não queira a decadência, não combata os instintos. Enquanto a vida ascende, felicidade é igual a instinto. Creio, que Sócrates, quando deu a si a cicuta, que na sabedoria da sua coragem antemortem percebeu-a não como veneno, mas como remédio de sua doença.
— Quem sabe você possa discutir seu ponto de vista diretamente com ele em algum outro dia. — Einstein olhou de soslaio para o gerente, que anuiu.
Camus observou, espirituoso: — Mas não seria um diálogo fácil, porque Sócrates vai sufocá-lo de perguntas... — e todos se puseram a rir.
A capacidade de achar graça de si mesmo era uma característica de mentes autossuficientes.
Neste momento, de súbito os convivas notaram que o homem sombrio sentado na mesa oposta havia se posto de pé e já ao lado do balcão inquiria o gerente. Uma autoridade nata dele emanava, uma presença marcante apesar de sua aparência desgarrada, ao que questionou, com voz baixa: —… não é a taverna Pônei Saltitante, então?
—Perdoai-me, nobre senhor, aqui é a taverna Lineoflife - respondeu o Gerente. A estalagem a que o senhor se refere fica na cidade de Bri.
Então, com incrível agilidade para seu tamanho, o homem arremeteu para a saída, a passos largos, sem sequer se dignar a notar os outros clientes.
— Parece ter um compromisso importante — notou o outro cliente de sábios olhos ao lado do balcão, entre uma castanha e outra, conversando com o gerente— e espero que seja bem sucedido em sua empreitada.
— Você não pode imaginar que personagens já recebemos aqui. Nada mais me surpreende! — respondeu Fábio, exasperado, balançando a cabeça.
A conversa que corria na mesa central foi retomada após alguns tensos instantes, com Sagan refletindo:
—Em relação aos instintos, nossa sobrevivência é um reflexo de nossa própria natureza e da forma como nossas características opostas são conduzidas: nossa porção agressiva, belicosa, reptiliana, e nossa capacidade para o amor e compaixão. A razão como função cerebral superior, elaborada e refinada, tende a nos tornar menos guiados pelos instintos primitivos danosos…ao menos para compreender os fenômenos ao nosso redor e tomarmos decisões mais benéficas.
—Quanto mais compreendemos, menos tememos. Afinal, é especialmente a nossa capacidade de raciocinar que nos distingue dos demais animais.—completou Einstein.
Camus comentou em tom áspero: — Sem querer parecer belicoso, mas vocês me parecem o exemplo de clássico homem da razão que acredita em contos infantis. Sobrevivemos ao absurdo da existência, meus amigos. E esse absurdo é a nossa consciência da impermanência.
Ao que Sagan calmamente respondeu, reposicionando os óculos: — Diria que a existência precede a essência, Camus.
—…e nossa essência a construímos. Por favor, não cite este simpático ao comunismo. Voltando ao raciocínio, esse Absurdo, com “A” maiúsculo, está sempre à nossa volta, quer queiramos ou não! — replicou Camus, com olhar incisivo. —Como nosso prestativo garçom bem escreveu — sim, também leio seus ensaios, Ricardo! — os tais “pontos de hiper-realidade existencial”, ou momentos em que a tragédia do cotidiano é desvelada, estão sempre à espreita. Um tapa no rosto que nos tira da ilusão da normalidade cotidiana. Pois sempre andamos com a faca invisível no pescoço — ou a corda, como preferir. Não temos escapatória. Não há sentido, nem significado, nem propósito. Nem interno, nem externo. Apenas resta a nossa reação ao Tigre que faminto quer nos devorar.
Einstein, saboreando seu prato típico, comentou:— Sabe, Camus, eu compreendo a regularidade das leis físicas e matemáticas do universo como uma resposta a este seu…Tigre voraz, ou Absurdo existencial. — complementou tranquilamente entre uma garfada e outra
— No entanto, o Tigre nasce do encontro entre dois conceitos opostos: a necessidade humana para encontrar um significado e a aparente falta de sentido — ou melhor, ausência de sentido do universo, nas suas palavras — Sagan afirmou, repousando os talheres no prato.
Camus franziu o cenho: — Somos contemporâneos, caro Einstein. Como experiência de vida, você deve saber que aderi à Resistência francesa contra a ocupação nazista.
Einstein suspirou, o sorriso desfeito, lembrando do período sombrio da Segunda Grande Guerra.
Camus rápido, continou: — Mas não se tratava de rebeldia, meu caro, pois não gosto de rótulos. E, por favor, também não me chame de existencialista. Heidegger e Kierkegaard que me perdoem! — exclamou levantando as palmas das mãos em um gracejo. — Afirmo isso pois até podemos partir do mesmo princípio, o absurdo da condição humana. Mas rejeito o escapismo, pois eles deificam o que os esmagam e acham razão para esperança no que os empobrece. Esta esperança forçada é religiosa em todos estes ditos existencialistas, que também lidaram com o problema do nosso Tigre!
Einstein, algo inquieto, questionou:— E o que você sugere então como solução, Camus, para o problema da existência sem sentido ou propósito?
Nietzche, pareceu acordar de um estado de transe: — Resta ao homem tornar-se senhor de si. Increscunt animi, virescit volnere virtus. [Crescem os espíritos, o valor viceja com a ferida].
Sagan, remexendo-se na cadeira: — Vejam, caríssimos filósofos Nietzche e Camus, sou avesso a jargões. Entendo que possuímos mínimo conhecimento sobre a natureza e o universo, e o seu significado; quanto mais sabemos, mais desejamos saber, e nosso horizonte se alarga. Mas a vontade de desbravar novos conhecimentos, novas maravilhas da natureza, realmente me traz um senso de realização, e, portanto, de sentido.
Camus se adiantou:— Sagan, nego que eu seja filósofo, porque não acredito suficientemente na razão para acreditar em um sistema. Apenas sou assertivo com minhas ideias e pouco as argumento, pois me preocupo mais com a experiência pessoal e imediata, mesmo que me confronte com verdades desagradáveis. Penso de acordo com palavras e não de acordo com ideias.
Os rótulos ou títulos nada importam aqui, Camus, perdoe-me.— concordou Sagan.
Camus completou:— Vejo o mundo como irracional, caro Sagan. O que significa que ele não é compreensível através da razão. Tentar entendê-lo é um esforço escapista, seja pela ciência ou pela religião, não importa. Para mim, ambas são apelos irracionais, paradoxalmente, porque o objeto de ambas é inalcançável. Pois é inexistente! O Absurdo a que me refiro é a razão lúcida notando seus limites. Eu grito, mas apenas recebo o silêncio.
Sabe Camus,— disse o garçom, de pé ao seu lado— Fernando Pessoa me confidenciou certo dia, daquele jeito introspectivo e formal dele, que no fundo todo homem religioso é um hedonista. Argumentava que o instinto religioso geral é um instinto de prazer, de ter tudo resolvido na vida. Deter-se só perante a Verdade é doloroso para o homem. Neste ponto o poeta deve concordar com você, pois escreveu que a Realidade é muda e fria; pelo menos em uma de suas personas poéticas pessoanas.
Einstein, pensativo: — Então possuímos a opinião de duas pessoas, como diria, relevantes para o pensamento. Mas, para você, Camus, o universo é ilógico?
Camus respondeu, grave: — Não, caro físico, mas há um impasse lógico. Quando a razão lúcida reconhece que não pode encontrar o porquê último. Nosso desejo inerente para a lógica e o significado — ou mesmo a admiração científica ou teológica ou metafísica — simplesmente não se alinham com a indiferença abissal do universo aos nossos desejos. À essa situação paradoxal chamo de o Absurdo!
Enquanto isso, próximo ao balcão, o cliente distinto conversava animadamente com o gerente.
— Todo convívio é de contrários, meu caro Fábio. E, portanto, potencialmente conflitivo. Dar melhor entendimento a esse convívio é nosso objetivo maior…— dizia, indicando a mesa central. —No meu caso, não apenas praticar a ciência médica, mas também se impactar com a sua arte, sendo o traço de união entre ambas a linguagem. Transmutar a sabedoria para o calor da vivência, assim como fazem nossos colegas ali presentes de forma magistral.
Ao que o gerente respondeu, inclinando-se atrás do balcão de mogno: — Realmente, professor. No meu caso, eu procuro, além de preparar bons drinks, iguarias singulares, transplantando ingredientes, preparar-me com toda a humildade intelectual possível. Brindemos!
Enquanto isso o debate se intensificava ao centro, com Camus tornando a explicar:
— O que me rendeu esta pena indizível para, em nossos plenos esforços fúteis, nada realizar, foi meu desprezo pelos deuses, meu ódio pela morte e minha paixão pela vida. Posso viver como Sísifo, o rei condenado a rolar eternamente uma pedra montanha acima para que ela simplesmente role de volta após cada esforço completado, na sua luta incessante e sem propósito. Posso viver com a certeza de um destino esmagador, mas sem a resignação que deveria acompanhá-lo!
Ao que Sagan interpelou, demonstrando preocupação: — Você afirmou que a ciência é escapismo, e a razão não pode apreender a realidade. Ciência não passa de uma palavra, do latim, para conhecimento; acho difícil aceitar que alguém seja contra o conhecimento.
— O único conhecimento válido e real é a consciência da finitude.— respondeu Camus.
— Lembro-me de Richard Feynman dizer que preferia questões que não podem ser respondidas a respostas que não podem ser questionadas. — sorriu o garçom..
— Para mim— disse Sagan — seria bem difícil deixar meu lado científico do lado de fora da taverna ao entrar. Eu apareceria pelado diante de vocês. E isto sim seria um absurdo! — provocando risos em todos à mesa.
Nesse momento, o gerente sinalizou discretamente ao garçom já atento, que tomou a palavra ao tocar um sinete dourado:
—Senhores, minhas escusas pela abrupta interrupção. Dentro de instantes receberemos mais uma ilustre companhia, que tenho certeza há de somar sobremaneira ao já interessante debate, com novas…perspectivas e visões particulares. Na pluralidade de ideias floresce a beleza do conhecimento.
Batidas suaves à porta com a aldrava em formato de coruja com as asas abertas foram ouvidas, que o garçom abriu com uma reverência ao novo convidado.
O olhos arregalados de todos à mesa foram evidentes, talvez exceto por Einstein, que logo reconheceu o jovem no umbral da entrada e abriu um largo sorriso.
Pois ali estava um padre.
Apresentava-se de traje completo: batina impecável, colarinho clerical e crucifixo discreto sobre o peito, uma bengala elegante, que prontamente entregou ao garçom.
Einstein imediatamente exclamou, antes mesmo que pudesse ser formalmente apresentado:
— Seja bem-vindo, caríssimo Colega!
Esse ensaio é a continuação de “O Banquete dos Pensadores”, da Taverna Line of Life.