Pende o fio da vida entre as lâminas afiadas da minha tesoura, que se fecham em instante incógnito. Minhas irmãs, Cloto e Láquesis, fiam e medem. O que ambas iniciam, eu termino. Mas quem decide, inflexível, o momento da indesejada das gentes, sou Eu, uma das primordiais, a mais antiga Moira. Observo o tear da roda da fortuna, em seu ápice e declínio, em apogeu e perigeu, momentos desejados ou repudiados, de glória ou de infâmia. Assim como o amor, sou fonte de poemas e canções; temida por muitos, compreendida por poucos, receosos pelo peso da expiação dos atos injustos praticados. Se não os tens, doce esperança, benévola ama da velhice. Bela ou soturna, existo pelo equilíbrio — mantido e necessário, inevitável como a vida: reis, sacerdotes, fios delicados ou ásperos, eu corto. Escravos e filósofos, novos, velhos, fios longos ou curtos, eu recorto. Amados e odiados, cruéis e bondosos, fios delgados ou espessos, eu rompo. Minhas lâminas a todos findam, sem exceção, e nisso triunfam, em êxito letal. A doce esperança governa os espíritos vacilantes dos mortais, caro Píndaro. Sem mim, catástrofe eterna: inumana imortalidade, caos triunfante, vida sem propósito, navegando em oceano infinito sem nunca chegar ao destino. Mesmo a mais bela melodia, se eterna, induz à loucura. Na Taverna, brilhantes fios de vida que se encontram e, entrelaçados, aguardam sem saber o fado final. Reunidos, dos mortais representam a Suma da Sabedoria, do latim summus, ponto mais elevado e essência; Soma do conhecimento, do grego sôma, corpo em sua ampla totalidade, com ou sem vida. Dois lexemas similares na feitio, sutis dessemelhanças, distintas em acepção, Duas tradições, do Lácio e Helênica, culturas jamais superadas. Eu sou Átropos — ou Aisa, se preferir, a Parca Morte dos romanos, a terceira das três irmãs. Determino quando tudo cessa, sem volta. Sou o fim necessário para que, então, a vida possa continuar. R.T. Schulz
Ele havia recebido três grandes chamados, revelações ou vocações durante sua vida, como quiser nomeá-las. A soma delas o havia conduzido até ali, diante daquela sinistra porta com a peculiar aldrava em formato de coruja — animal antigo símbolo da sabedoria, assim como a serpente. E agora não havia mais como recuar.
Dos três chamados, o último fora certamente o mais estranho, e o que o levara àquele ponto do espaço-tempo. O primeiro, sua vocação para o sacerdócio católico, surgira cedo, antes mesmo que suas impressões mais elaboradas sobre o funcionamento do mundo amadurecessem. Entrou para o seminário, e foi ordenado padre em 1923. Era, portanto, a vocação mais intrínseca ao seu ser, a mais espiritual.
Um pouco mais maduro, veio a segunda vocação, nos tempos da publicação em 1931 de sua principal tese, já com sua formação científica como matemático, cosmólogo, astrônomo e físico, chamada de hipótese do “Átomo Primordial”. Sentia que as duas vocações estavam entrelaçadas, cada uma respondendo a questões distintas da existência, a primeira, espiritual e a segunda, material ou racional. Sua visão, por assim dizer, cósmica, foi considerada importante não apenas para a ciência, mas também para o mundo inteiro. Aquela teoria ficaria conhecida como a Teoria do Big Bang, ou a origem do universo, uma vez que determinou a expansão do universo, e portanto se retrocedêssemos no tempo haveria um momento de início puntiforme, onde toda a matéria existente atualmente estaria concentrada em um único ponto. Por óbvio que não aprovava esta denominação, pois não houve uma explosão propriamente dita, mas uma súbita e incrível expansão primordial. A tentação para relacionar este evento à Criação foi óbvia para embasar, ou comprovar, com uma teoria científica um evento bíblico… tal ocasião lhe rendeu inclusive uma audição, para não dizer um imbróglio nem um pouco confortável, com o próprio Sumo Pontífice, Sua Santidade Papa Pio XII, que usou sua teoria do Átomo primordial como propaganda criacionista.
E agora chegara a terceira e última vocação. De natureza distinta das outras, não sabia se se tratava de um aviso ou de uma advertência. De qualquer forma, a situação deixara-o, um homem sustentado por sólida e inegável formação teológica e científica, absolutamente inquieto — e, de certo modo, descrente. Seria possível? A tal ponto que não mais sabia se ainda podia confiar em sua lucidez e julgamento, pois o que lhe acontecia não era factível sob nenhuma perspectiva, nem racional ou espiritual: não era plausível, pouco havia de explicável, por mais que tentasse. No entanto, lá estava ele, exasperado, em carne, osso e espírito, diante daquela porta tenebrosa.
Levantou a mão ao rosto, como para se certificar da veracidade de tudo aquilo. Sentiu a umidade do suor escorrendo-lhe na fronte, apesar do ambiente agradável do lado de fora, sob o umbral. Então, tateou os entalhes da porta. Logo acima da aldrava em forma de coruja, havia um desenho em alto-relevo de uma górgona, com detalhes impressionantes. O entalhe na madeira parecia transmitir o movimento vivo das serpentes em torno da cabeça feminina. Conseguiu até imaginar a beleza hipnótica que um dia repousara naquela mulher, antes de ser amaldiçoada por uma deusa que ousara desafiar.
Mas aqueles tempos pertenciam ao passado, às memórias de um povo antigo, cuja fé em seus deuses se tornara apenas mitologia — rica, sim, mas ainda assim pagã. Recordou que houve uma época em que os cristãos foram perseguidos por desafiar esta mesma religião politeísta. Somente séculos depois, o cristianismo pôde finalmente dominar, substituindo aqueles supostos deuses pelo verdadeiro Deus; secretamente regozijou-se pelo triunfo do cristianismo sobre a superstição — a vitória da correta fé sobre as histórias fantásticas. Contudo, sabia muito bem que a religião, vivenciada, na realidade também se modificara e… havia amadurecido ao longo dos séculos. Houve tempos em que várias correntes competiam para impor suas diferentes visões da Santíssima Trindade, lutando entre si nos primórdios após Cristo, muito antes da Reforma Protestante.
Sentia, no seu ãmago, que algo tão complexo quanto o sentimento religioso no ser humano precisava de tempo para entendimento, para ser apreendido e assimilado. Percebia que, com o advento da ciência moderna, o papel da religião também estava sofrendo mudanças rápidas e significativas, como nunca antes. Admitia para si mesmo que a religião fora usada como instrumento de dominação, ao mesmo tempo em que servira como cimento da sociedade. Algo que se baseia em dogmas — inquestionáveis, portanto — naturalmente enseja a tomada de poder. E o poder, claro, corrompe.
Enquanto tocava a górgona, certo de que aquilo era concreto e não um sonho delirante, um pensamento intrusivo — herético — lhe atravessou a mente. Ele balançou a cabeça negativamente com força, tentando expulsá-lo. Era como uma sombra de veneração antiga por valores esquecidos, como quem sopra o pó de um livro antiquíssimo. Instintivamente retirou os dedos que antes tateavam a porta. Sua fé lhe negava profundamente aquele sentimento, e sua razão não o permitia aceitá-lo como verídico.
Foi então que sua atenção se desviou dos devaneios oníricos, capturada pelas vozes animadas e pela música clássica que soava no interior da taverna. Não precisou olhar para a placa sobre sua cabeça para saber o nome do lugar — Lineoflife. Já sabia onde estava, quem deveria encontrar lá dentro e qual o propósito de sua chamada.
Chamada… ou maldição? Fora enganado pelo grande mentiroso, trapaceiro, inimigo de Cristo?
Estremeceu.
Uma voz ecoou em sua mente: “Deve ser tu, Lemaître, pois és a ponte. Foste escolhido.”
Aquelas palavras ressoaram em sua cabeça como um trovão; nunca havia sentido tamanha força avassaladora. Não eram um pedido, mas um imperativo, contra o qual sua vontade parecia frágil — como o bater de asas de borboleta diante de um furacão. Claro, havia a curiosidade do seu lado cético e científico, exigindo provas e confirmações. Mas havia também a necessidade de testar a força de sua própria fé, agora desafiada como nunca antes.
Tudo isso se passou em um átimo em seus pensamentos, então inspirou profundamente, encheu-se de coragem para acionar a estranha aldrava em forma de coruja como havia sido orientado. Tocou delicadamente o crucifixo em seu peito sobre a batina, as mãos úmidas; se encontraria o céu ou o inferno, agora já não mais havia retorno, e iria enfrentar. Sua fé e sua razão seriam seu escudo e sua espada — afiadissima por sinal.
Após três percussões à porta foi-lhe revelado.
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— Seja bem-vindo, caríssimo Colega!
A simpática figura que se levantava da cadeira para recebê-lo de braços abertos era inconfundível. Um senhor de cabelos grisalhos, um pouco rebeldes, sorriso largo e olhos acolhedores.
— Albert!? É você mesmo? — perguntou o sacerdote, ajustando os óculos de aros arredondados.
Ao que foi recebido com um discreto, porém afetuoso abraço, ao se aproximar da mesa central após entregar a bengala para o atendente à entrada.
— Sim, meu caro. Estou aqui, em carne e osso… e pensamento.— respondeu Einstein. —Faz algum tempo que não nos vemos, meu amigo; talvez na Conferência de Solvay, se não me falha a memória. Senhores, meus caríssimos Niezsche, Camus, Sagan! — disse, dirigindo-se ao convidados sentados à mesa.
—Tenho a honra de lhes apresentar o colega Georges Henri Lemaître, uma das maiores mentes deste século, o homem que corrigiu minha teoria.
…continua.
A história da Taverna Line of Life começou aqui….