Escrever e ser livre partilham a mesma base: o perigo
Coragem não é ornamento, mas condição de relevância.
No auge do terror da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, os inimigos do regime eram presos na Sibéria, onde, isolados pela geografia e pelo clima, eram submetidos a trabalhos forçados e entregues ao seu destino nefasto. Em 1941, Slavomir Rawicz, polonês acusado de espionagem, junto com um pequeno grupo de prisioneiros fugiu de um campo de trabalho forçado e iniciou uma jornada rumo ao sul, atravessando a Sibéria, o deserto de Gobi, o Tibet e os Himalaias em direção à Índia Britânica. The Long Walk, publicado em 1956, resultado de uma série de entrevistas do fugitivo para Ronald Downing é o relato épico dessa jornada de coragem em busca da liberdade.
Escrevemos porque queremos transmitir algo, informações ou emoções. Somos eventualmente escritores-médicos ou médicos-escritores. Na primeira, nos é permitido escolher entre trajar um prêt-à-porter, uma roupa de alta costura, sob medida ou criativa; na última vestimos o traje formal do dever deontológico (pelo Código de Ética Médica) de educar, promovendo reflexão e reformas. O busílis é que divulgar a ciência médica entre médicos — em artigos científicos, congressos — é fácil, o problema é a transposição da razão para a emoção, necessária para a divulgação não científica. A ferramenta cognitiva da interpretação do público leigo é “um longo caminho que passa não apenas pelo raciocínio lógico e analítico, mas principalmente pelas impressões, território carregado de emoções. Só se convence pela racionalidade os racionais, naturalmente uma pequena parcela da população. A maioria tem que ser pega pela emoção, porque age emocionalmente o tempo todo”; como afirmava João Manuel Cardoso Martins.
O primeiro grande objetivo dos fugitivos era atravessar o Rio Lena. Gelado, congelado, ele se estendia por mais de meia milha de largura, correndo ainda milhares de quilômetros até o Oceano Ártico. Vencer essa etapa significava sair da área do campo de trabalho forçado, para seguir ao sul, almejando contornar o Lago Baikal. Atravessar esse acidente geográfico congelado foi uma renovação de confiança, já que “in all our minds had been the idea we might never reach the Lena”.
A linguagem escrita é um instrumento imperfeito que nunca captura a essência total do autor ou do leitor. Em “O Escritor Perfeito”, Ricardo Schulz revela como o leitor se reflete alterado na esfera da escrita e que a única maneira de se atingir a escrita perfeita seria atingir a precisão matemática, não obstante tamanha precisão sacrificaria a ambiguidade rica da linguagem, essa essencial para transmitir sensações e emoções. Se Cardoso Martins mostra a necessidade da transposição, Schulz nos ensina o local onde devemos resolver esse imbróglio, “O escritor habita uma fenda, um espaço entre o que deseja exprimir e a impossibilidade de dizer tudo.” Essa fenda é o Rio Lena de Rawicz — largo, gelado, traiçoeiro — a barreira natural similar à imperfeição da linguagem que cria uma divisão entre o comunicador (o médico racional) e o receptor (o público emocional).
Escrever para a conexão humana é um risco para o médico-escritor, uma fonte de perigo, pois os temas médicos não são apenas técnicos, mas carregados de potencial explosivo. A saúde lida com sistemas que aspiram à perfeição ou igualdade, mas são minados por imperfeições inerentes. Em “Contra o Estigma, a Misericórdia” tocamos em tabus emocionais de vergonha, vulnerabilidade e estigmas em saúde mental, já em “Faustão, Saúde e a Fila que é Igual para Todos”, revelamos inequidades no sistema de transplantes — não por manipulação direta, mas por disparidades socioeconômicas que afetam o preparo dos pacientes e que podem afetar a confiança do sistema. Nesses textos o perigo para o comunicador é palpável: ao escrever com transparência, ele se expõe a acusações de elitismo, reações de ceticismo, a críticas de colegas e sanções éticas. Como "O Escritor Perfeito" adverte, a ambiguidade da linguagem pode ser mal interpretada, pois o público pode ver nas revelações médicas um espelho de suas próprias frustrações sociais – o público fica irritado por seu reflexo alterado na esfera da escrita. Essa dinâmica não é acidental; é inerente, pois temas médicos lidam com o que há de mais primal: o medo da morte, a esperança de cura e a indignação com injustiças.
O alcançar da Ferrovia Transiberiana e a chegada na Mongólia marcaram a transição do inverno siberiano para o verão mais ao sul, no qual os pesados casacos de pele precisavam ser abandonados durante o dia, mas ainda necessários durante a noite. Ali encontraram uma boa recepção dos nativos que lhes ofereceram nozes, peixe seco, grãos de cevada e bolos de aveia do tamanho de biscoitos, todos em porções igualitárias entre os membros do grupo fugitivo, em conjunto com saudações e estimas de felicidades na jornada, cortesia, generosidade e hospitalidade. Segundo Rawicz “the help received was according to the means of the giver, but that help was always cheerfully given.”
A travessia do deserto de Gobi é uma das passagens mais emblemáticas em The Long Walk. Durante dias, o grupo caminhou sob o sol escaldante, sem água, atormentado por alucinações e pela morte de dois companheiros. Para sobreviver, comeram cobras e beberam de fontes barrentas, que pareciam dádivas divinas em meio à aridez. Rawicz recorda: “In the shadow of death we grew closer together than ever before. No man would admit to despair. No man spoke of fear.” Por fim, chegaram ao Tibet.
A transposição do racional para o emocional é, de fato, o coração da escrita do médico comunicador, mas não basta reconhecer a transposição; é preciso aceitar o perigo que ela traz: mal-entendidos, críticas, acusações. Para evitar a exposição ao perigo podemos utilizar de três soluções: esculpir a escrita perfeita, matemática, para a transmissão da informação pura e simples, a “equação de soma nula” de Schulz. A segunda é a utilização reptícia de técnicas de costura semântica, substituir pontos finais por vírgulas, ponto e vírgula ou travessões intercalados, com o intuito de impedir o isolamento de frases de forma que tenham seu sentido modificado — técnicas de media training. A terceira seria simplesmente não tocar em temas sensíveis. A utilização dessas três soluções resulta no pasteurizar a tal ponto a escrita que ela se torne uma planície erma, uma escrita asséptica que leva à estagnação e à morte da comunicação, potencialmente até na forma de autocensura. Nelas o desfecho é um deserto mortal pela ausência do desejo de abordar temas relevantes ou o “deserto da exatidão absoluta da linguagem” de “O Escritor Perfeito” de Schulz. Em ambos os desertos – da exatidão absoluta ou o do relevo asséptico — perdemos a ambiguidade rica necessária para transmitir sensações e emoções; flertamos com a fraqueza do corpo e da alma e a aproximação da morte, conforme encarado no deserto pelos fugitivos: “we were all perilously weak and dangerously near death”.
A travessia do acidentado território do Tibet foi povoada com encontros com uma diferente cultura, com variados tipos de recepções, desde as mais amistosas, suspeitas e indiferentes. Comida e locais de descanso foram oferecidos durante a jornada, mantendo a chama da esperança acesa. Nos picos do Himalaia, as passagens estreitas, os picos cobertos de neve e o ar rarefeito mudaram a face do desafio, ainda assim encontraram acolhida em mosteiros tibetanos, onde monges lhes ofereceram alimento, abrigo, bênçãos. Mesmo sem partilhar a língua, a ajuda mútua os empurrou à frente. Chegar à Índia foi o momento de alívio máximo, e conforme a sensação de segurança foi aumentando, a certeza do alcance da liberdade parecia surreal, marcando o fim da jornada física.
A coragem para superar a vastidão da variabilidade geográfica foi a peça-chave dessa jornada para a liberdade, a variabilidade geográfica não foi um obstáculo, mas o caminho para a liberdade. O que torna nosso planeta — e a escrita — maravilhoso é a variabilidade, não a uniformidade. Não podemos criar desertos inabitáveis a partir da autocensura por medo, precisamos incorporar os relevos na nossa escrita. Devemos escrever com coragem, aceitando que reações negativas são o preço da relevância, pois a arte da comunicação é aquela que realmente espelha e transforma.
Dado que a escrita é um “ato falho”, o médico-escritor deve buscar o refino, ecoando a ideia de que a comunicação total é uma miragem, mas o contínuo tentar pode lapidar a superfície, tornando-a mais reflexiva. Talvez o "médico-escritor perfeito" seja aquele que expõe as falhas sem pretender resolvê-las, convidando-nos a uma comunhão imperfeita, reflexiva, honesta, não-doutrinária. Talvez a verdadeira perfeição resida em aceitar essa falha como fonte de beleza, nos incentivando a escrever não para a perfeição, mas para a conexão imperfeita, humana.
A exposição é inerente à transparência ética. A escrita transparente pode mitigar riscos ao ser equilibrada, apontar falhas, propor soluções. O catalisador é a transposição, a humanização dos dados — ancorado em evidências científicas, protocolos e ética profissional — utilizando-se de ferramentas concretas para fazê-la: metáforas, narrativas, literatura.
Não se trata de diluir fatos em sentimentalismo, mas de lapidar a linguagem até que ela, como um rio congelado ou um deserto atravessado, consiga refletir o leitor de forma transformadora: dados frios ganham vida por meio de histórias, empatia e contexto humano. Isso mitiga perigos, fomentando diálogo em vez de confronto.
A travessia de Rawicz foi de vida ou morte; a nossa, infinitamente menor, mas ainda necessária. O perigo, então, não é uma barreira, mas um catalisador — um lembrete de que a escrita médica, como toda arte, é "quite useless" se for inofensiva, mas vital se provocativa. The Long Walk incorpora essa realização transcendental: a liberdade não é um destino fácil, mas uma conquista forjada em sofrimento variado.